Fado: as vozes e as guitarras em Festa (nos 60 anos do Fado Peniche)

Manuel Pires da Rocha

Fado: as vozes e as guitarras em Festa (nos 60 anos do Fado Peniche)

Em muitas madrugadas de entre 1960 e 1962, Amália Rodrigues subiu ao palco do Teatro Taborda, ali à Encosta do Castelo, para trabalhar, juntamente com os músicos e os técnicos, os fados que viriam a ser reunidos no LP a que o público chamaria Busto (por exibir na capa não mais do que o nome da fadista e um busto representando-a a cantar, da autoria de Joaquim Valente, fotografado por Nuno Calvet). O Busto confirma Amália como grande intérprete, mas também como grande dinamizadora do Fado enquanto corrente artística capaz da reinvenção. É em Busto que Alain Oulman se revela grande compositor do Fado.

Abandono foi um dos nove fados registados no Taborda e publicados no LP, mas não tardaria a encontrar denominação mais conforme com o seu dizer: «a 10 de abril 1959 David Mourão-Ferreira assinava o poema que viria a consagrar-se como Fado Peniche, numa alusão explícita à prisão, naquela Fortaleza, de um célebre opositor do regime. Entre a redacção de Abandono e a sua gravação em disco, com música de Alain Oulman, Álvaro Cunhal fugia do forte de Peniche, na noite de 3 de Janeiro de 1960» (Sara Pereira, directora do Museu do Fado, em As mãos que trago: Alain Oulman 1928-1990, EGEAC, 2009).

O Fado Abandono é um claro objecto de criação artística antifascista, tradução estética da tomada de posição no confronto com a ditadura, com coragem e criatividade. À tragédia que as palavras retratam, corresponde uma melodia que é Fado, mas é também aquilo a que o guitarrista José Nunes chamaria «óperas» – um traço desalinhado e desafiador no retrato de um velho e digno rosto musical. Dizendo «ao menos ouves o vento / ao menos ouves o mar», Mourão-Ferreira identifica com desassombro a prisão em que a construção das janelas viradas a poente impedia o preso político de ver o Oceano; mas aquele «ao menos ouves o vento» vem carregado da esperança que inspirou Oulman a vestir as palavras de um desenho melódico inverso do fatalismo.

Abandono foi editado em disco, mas a Censura recusou-lhe o acesso à difusão pública. Amália Rodrigues, pelo seu lado, sustentou sempre nada ter encontrado de subversivo no belíssimo poema de Mourão-Ferreira. Mas o jornalista Miguel Carvalho duvida da declarada ingenuidade e revela (por interpostas vozes) no seu livro Amália – Ditadura e Revolução que «a mesma Amália com que o regime flirtava e que, em certos casos, se permitiu ser usada pela ditadura, proporcionou, ao longo de várias décadas, ajuda preciosa às famílias dos presos políticos, à resistência antifascista e a vários movimentos da oposição a Salazar». Sustenta o jornalista que ao facto não serão certamente estranhas a origem de classe de Amália Rodrigues e a amizade ao longo de toda a vida com Maria Alda Nogueira, destacada dirigente comunista.

Presença constante na Festa

Na Festa do Avante!, celebração total das humanidades todas, o Fado ocupa o espaço natural que as linguagens artísticas ali preenchem, numa conversa entre as músicas todas, entre as artes todas. Por isso é que, nos encontros que a Festa vem proporcionando entre artistas e toda a gente, o Fado esteve sempre presente, umas vezes na qualidade de instrumento de transformação das anomalias do mundo, outras vezes retrato indispensável do povo de Lisboa – entre acreditares e ofícios, aqui um esboço de saudade, ali um refrão de resistência; outras vezes, ainda, toada «desviada» por poetas populares do vasto Alentejo, como os fazedores de décimas dos Bonecos de Santo Aleixo ou aquele Aleixo também, mas neste caso algarvio, a quem chamavam poeta, a quem chamavam fadista.

O Fado na Festa é, desde sempre, assunto de muitos palcos, de muitos fadistas, de muitos instrumentistas, letristas, compositores – desde a FIL à Atalaia cantou-se o Menor, o Mouraria, o Triplicado, o Carriche, o Falado e todos os que lhes prolongaram vidas; evocou-se o Armandinho, o Nery, o Martinho D’Assunção nas mãos de tantas gerações de instrumentistas. E cantou-se a plenos pulmões – num coro de milhares de vozes – cada refrão do Ary.

Saudando os 60 anos do Fado Abandono (do Fado Peniche) evoca-se Amália Rodrigues, David Mourão-Ferreira e Alain Oulman. E, neles, o Fado que canta histórias, o Fado que conta a História.




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