A ilusão das multas de muitos milhões da Autoridade da Concorrência

Manuel Gouveia

Tudo o que a re­gu­lação con­segue é uma ilusão de pre­ser­vação da livre con­cor­rência

De vez em quando po­demos ler uns tí­tulos de jor­nais como este: «Con­cor­rência multa três ca­deias de su­per­mer­cados e for­ne­cedor de be­bidas al­coó­licas em 5,6 mi­lhões de euros». É um tí­tulo re­con­for­tante, que mais do que uma in­for­mação ob­jec­tiva nos trans­mite uma sen­sação de se­gu­rança: a re­gu­lação fun­ciona, os abusos são pu­nidos, os in­frac­tores são pe­na­li­zados, o sis­tema fun­ciona. Mas nada podia ser mais falso. A re­gu­lação não fun­ciona, os abusos não são pu­nidos, os in­frac­tores não são pe­na­li­zados, o sis­tema não fun­ciona, os mo­no­pó­lios mandam!

Desde logo, há um dado que ra­ra­mente é ob­jecto de no­tícia. Talvez por ser muito pouco re­con­for­tante. É que as multas são pas­sadas, mas daí ao seu pa­ga­mento vai uma dis­tância muito grande. Olhemos para os três úl­timos anos através dos Re­la­tó­rios e Contas da Au­to­ri­dade da Con­cor­rência (AdC): foram apli­cadas multas no valor de 870,2 mi­lhões de euros; foram co­brados 1,5 mi­lhões de euros em multas!!! Foi co­brado um valor equi­va­lente a 1,8 por cento (um vir­gula oito, sim, não é en­gano!) do total de multas pas­sadas (ver quadro).

Todos estes pro­cessos acabam nos tri­bu­nais ad­mi­nis­tra­tivos, com as grandes em­presas a ser de­fen­didas pelas grandes firmas de ad­vo­gados, ca­pazes, a troco de uns mi­lhões (que a Pro­cu­ra­doria e os Tri­bu­nais não têm), de ar­rastar muitos pro­cessos quase até ao in­fi­nito e de pres­si­onar para o ar­qui­va­mento ou para a so­lução ne­go­ciada muitos ou­tros. Veja-se o caso no­tável, que se ar­rasta há mais de 12 anos, do cartel da banca im­pli­cando os prin­ci­pais bancos por­tu­gueses por com­bi­nação das co­mis­sões, que, quando pa­recia que ia ter o des­fecho ade­quado, o Tri­bunal de San­tarém re­solveu pedir a opi­nião ao Tri­bunal de Jus­tiça Eu­ropeu, que já veio anun­ciar que não con­si­dera o pro­cesso pri­o­ri­tário.

Mas é pre­ciso dizer que mesmo que essas multas fossem todas co­bradas, e nunca o são, elas apenas afloram as prá­ticas mo­no­po­listas, não as travam nem as in­vertem. A AdC queixa-se da falta de meios – e queixar-se-á com razão –, mas é como o homem a quem man­daram es­va­ziar o mar e apenas se queixa do ta­manho do balde! Podem au­mentar o balde, ar­ranjar uns braços me­câ­nicos para mo­vi­mentar esse balde que se tornou de­ma­siado pe­sado para o homem, mas há algo que es­tará sempre fora do seu al­cance: es­va­ziar o Mar.

É ver­dade que prá­ticas como o cartel são di­fí­ceis de provar. Não basta ver na au­to­es­trada os preços das di­fe­rentes ga­so­li­neiras ali­nhados até ao dé­cimo de cen­tavo, é pre­ciso provar que tal acon­tece por acção de um cartel. E quando se con­segue provar – no caso re­fe­rido no pri­meiro pa­rá­grafo, a AdC terá con­se­guido reunir prova do­cu­mental não só das prá­ticas ile­gais para pro­vocar «uma su­bida, gra­dual e pro­gres­siva, dos preços de venda ao pú­blico», mas também da ten­ta­tiva de eli­minar a prova –, é pre­ciso en­frentar o poder eco­nó­mico num sis­tema de jus­tiça cada vez mais mer­can­ti­li­zado e cada vez mais cons­truído para, por um preço, per­mitir todo o tipo de fugas. Aliás, algo que é uma prá­tica his­tó­rica: até uma Bula de perdão dos in­fernos se con­se­guia com­prar nos «bons ve­lhos tempos»...

Mas re­pe­timos. O pro­blema cen­tral também não é a forma do balde. É pen­sarmos para que raios quer um homem es­va­ziar o Mar? Porque que­remos fazer da con­cor­rência a base da nossa eco­nomia? Que ga­nham os tra­ba­lha­dores com isso? A livre con­cor­rência conduz sempre à con­cen­tração mo­no­po­lista, basta olhar para todos os sec­tores li­be­ra­li­zados. Mesmo quando a re­gu­lação evita – na forma – a con­cen­tração num único mo­no­pólio, os grupos mo­no­po­listas impõe-se, dois, três, às vezes quatro ou cinco, mas impõe-se, e ine­vi­ta­vel­mente car­te­lizam preços e prá­ticas. Tudo o que a re­gu­lação con­segue é uma ilusão de pre­ser­vação da livre con­cor­rência.

Em vez de re­gular um sis­tema onde todos lutam contra todos – no mer­cado através da con­cor­rência – é ne­ces­sário er­guer uma so­lução su­pe­rior, as­sente na co­o­pe­ração e no plano. O que, na ac­tual fase, e ci­tando o pro­grama do PCP, exige um «pla­ne­a­mento des­cen­tra­li­zado e par­ti­ci­pado que, numa base pros­pec­tiva e in­te­grada, es­ta­be­leça, tendo em conta o mer­cado, as grandes li­nhas ob­jec­tivos e metas» para o de­sen­vol­vi­mento do País.

 

 



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