- Nº 2549 (2022/10/6)

Chavões e outras armas do imperialismo

Opinião

A máquina de domínio do poder que aspira à hegemonização planetária para impor a sua visão imperialista, e o modo de produção capitalista que a suporta, têm na elaboração e difusão ideológica um recurso privilegiado. Recurso tão mais intensificado e massificado quanto vê perigar a ordem pré-concebida, seja à escala global ou local.

Em todos os momentos e situações em que se evidencia o inevitável conflito entre o que se propagandeia enquanto instrumento de dominação e as evidências concretas que teimam em emergir da realidade, as simplificações são a arma de recurso do capital. Expressões, conceitos ou meras palavras, despidas da substância que as envolvem, são repetidas à exaustão para serem tomadas como certas, confiando que assim se evita esse perigoso acto de questionamento, reflexão ou verificação dos factos que destaparia as falsificações que ali se escondem. A forma, falseada na sua apresentação, sobrepõe-se à incomodidade que os conteúdos revelariam, os conceitos vagos e os chavões vendidos como teses inquestionáveis submergem a substância das coisas, dos processos ou dos acontecimentos. Não só pensar é perigoso como questionar é criminoso.

A listagem de vocábulos é imensa, varia no seu uso face às circunstâncias, recria-se em função do que a cada momento se adapta às exigências e objectivos de dominação. Tenham sido, por ora esquecidas, «guerra fria» ou «cortina de ferro», seja a falseada evocação de «direitos humanos», seja a mais mundana apresentação do capital como «fonte produtiva da riqueza». Todas elas repetidas seja para ostracizar ou demonizar sistemas sociais opostos ao capitalismo; seja para iludir o processo produtivo apresentando capital e trabalho como coisas despidas da relação social face ao modo de produção; seja para vender um conceito de direitos humanos fora da relação entre o indivíduo e sociedade, exponenciando as especificidades de cada indivíduo (que os distingue, sem dúvida, do todo) para, no essencial, negar esse todo onde se insere e relaciona designadamente na esfera das relações de produção.

Os tempos presentes reclamam a convocação de outros chavões, ainda que não tendo particular novidade, são trazidos à força da conjuntura para a primeira linha dos argumentos. Aí estão em força a proclamação de um «mundo livre», que tem como matriz e código genético a opressão e colonização; a inventada «civilização ocidental», só explicável pelas pulsões xenófobas que diferenciam direitos em função de tom da tez e íris ou de opções religiosas; ou o mais batido uso de «democracia» (conceito despido de qualquer dimensão sócio-económica e travestida de sinónimo da ordem reinante), agora apresentada como antítese do que designam por autocracia (que em linguajar imperialista é tudo o que ouse opor-se ou contestar a ordem hegemónica dos EUA e dos seus aliados).

Nem se convocará para este texto o conteúdo objectivo do conceito de democracia, a ardilosa ocultação da dimensão económica e social que lhe é inerente, a natureza das relações de poder a partir de quem o detém e exercita esse domínio, a dimensão coerciva de todo e qualquer exercício de poder numa sociedade onde conflituam interesses de classes antagónicas, por mais que se abespinhem os que querem vender uma pureza de conceito que não resiste a qualquer expressão de latente antagonismo. Pura propaganda marxista, gritarão, agarrados ao formalismo (ditatorial, de facto em todas as formas de poder) da dimensão política para ocultar o vazio em matéria económica, social e cultural que deveria acompanhar a palavra. Uma dimensão democrática e de liberdade vista como garante de uns a poder explorar e dominar, condenando todos os outros à liberdade de ser explorado, injustiçado ou até escravizado.

É este idolatrado mundo livre que a ordem imperialista e os zelosos garantes do capitalismo, quer os que a comandam quer os que a secundam, querem ver perpetuado nas retomadas cruzadas de pilhagem e opressão que vão espalhando pelos cinco continentes neste conhecido exercício de atirar pedras, esconder a mão e responsabilizar terceiros. Uma deriva tão mais perigosa quanto a percepção de perda relativa desse poder hegemónico e da potencial ameaça de poder sucumbir, perante as suas limitações e contradições inerentes ao modo de produção que lhe subjaz e, sobretudo, que a luta dos povos e a afirmação de opções soberanas possa determinar.

 

Jorge Cordeiro