Outubro e o centenário da URSS um legado que interpela o nosso tempo

Luís Carapinha

O de­sa­pa­re­ci­mento da URSS re­pre­sentou uma imensa tra­gédia para os seus povos

Co­me­mora-se, a 7 de No­vembro, o 105.º ani­ver­sário da Re­vo­lução de Ou­tubro. A pas­sagem deste acon­te­ci­mento se­minal as­sume um ca­rácter sin­gular no ano em curso. Não apenas pela con­jun­tura al­ta­mente com­plexa e tur­bu­lenta, ele­vada a um novo pa­tamar: a guerra tra­vada na Ucrânia, já no nono mês, e a vasta cam­panha mon­tada contra a Rússia, as ame­aças em cres­cendo im­postas por Washington vi­sando a China, a de­gra­dação do quadro de se­gu­rança in­ter­na­ci­onal e o sub­ja­cente apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo, num ce­nário de es­tag­flação e re­cessão em erupção do seio das eco­no­mias dos países do G7. Também, porque na ac­tual grave si­tu­ação mun­dial, ca­rac­te­ri­zada por al­gumas fi­guras de di­fe­rentes qua­drantes, na es­sência, como o início ou imi­nência de uma III Guerra Mun­dial, se com­pletam 100 anos de outro acon­te­ci­mento maior da his­tória, di­rec­ta­mente re­sul­tante do triunfo bol­che­vique de 1917: a fun­dação da União das Re­pú­blicas So­ci­a­listas So­vié­ticas (URSS), a 30 de De­zembro de 1922.

 

Na­quela data, os mais de dois mil de­le­gados do I Con­gresso de So­vi­etes da URSS, reu­nido em Mos­covo, apro­varam a De­cla­ração e Tra­tado cons­ti­tuintes do novo Es­tado. Os seus prin­cí­pios pro­cla­mavam o ca­rácter vo­lun­tário, a con­dição de igual­dade das re­pú­blicas e o di­reito de saída da União. Foram quatro as re­pú­blicas fun­da­doras da URSS: a Re­pú­blica So­ci­a­lista Fe­de­ra­tiva So­vié­tica da Rússia (RSFSR), a Re­pú­blica So­ci­a­lista So­vié­tica da Ucrânia (RSSU), a Re­pú­blica So­ci­a­lista So­vié­tica da Bi­e­lor­rússia (RSSB) e a Re­pú­blica So­ci­a­lista Fe­de­ra­tiva So­vié­tica da Trans­cau­cásia (RSFST), in­te­grada pela Geórgia, Azer­baijão e Ar­ménia. Ou­tras se jun­ta­riam nos anos logo a se­guir, casos das re­pú­blicas de Bukhara e da Co­rásmia. Após a sua re­for­mu­lação, nos pri­meiros anos da URSS, foram cri­adas as re­pú­blicas do Uz­be­quistão, Ta­ji­quistão e Tur­que­me­nistão, e ainda da Quir­guízia e Ca­za­quistão. Nal­guns casos, to­tal­mente a partir de ter­ri­tó­rios e en­ti­dades au­tó­nomas da RSFSR, todas elas an­tigas pos­ses­sões na Ásia Cen­tral do Im­pério Russo, con­fir­mando a via ma­gis­tral de au­to­de­ter­mi­nação e eman­ci­pação na­ci­onal im­pri­mida pelo poder so­vié­tico, apesar das con­tra­di­ções e di­fe­rentes pers­pec­tivas exis­tentes no PCR(b).

 

A fun­dação da URSS cons­ti­tuiu um ex­tra­or­di­nário em­pre­en­di­mento co­lec­tivo, tendo como fio con­dutor o papel des­ta­cado as­su­mido pelo par­tido bol­che­vique. Neste âm­bito, cabe des­tacar a ex­tra­or­di­nária con­tri­buição de Lé­nine, prin­cipal fun­dador da União So­vié­tica e pri­meiro pre­si­dente de­sig­nado do Sov­narkom, o Go­verno da URSS, res­pon­sa­bi­li­dade que não chegou a de­sem­pe­nhar de­vido à do­ença que le­varia à sua morte pre­ma­tura, aos 54 anos, em Ja­neiro de 1924. Lé­nine li­derou o Go­verno re­vo­lu­ci­o­nário após a to­mado do poder. A sua as­si­na­tura pre­sidiu à for­mação da RSFSR e à adopção da Cons­ti­tuição so­vié­tica na Rússia, em Julho de 1918, cinco anos antes da en­trada em vigor da pri­meira Cons­ti­tuição da URSS (6 de Julho de 1923).

 

In­de­pen­den­te­mente do seu des­fecho no final do sé­culo XX, é im­pos­sível, ob­jec­ti­va­mente, su­bes­timar o papel e im­pacto his­tó­ricos da URSS. O seu apa­re­ci­mento en­quadra-se numa época de grandes rup­turas e trans­for­ma­ções re­vo­lu­ci­o­ná­rias, aberta com a Re­vo­lução de Ou­tubro de 1917, o ponto de re­so­lução da crise re­vo­lu­ci­o­nária de 1917 na Rússia que se ini­ciara com a Re­vo­lução de Fe­ve­reiro, le­vando à de­po­sição da mo­nar­quia, for­mação do Go­verno Pro­vi­sório em Pe­tro­grado e queda do Im­pério Russo, num con­texto em que o re­gime au­to­crá­tico cza­rista havia ato­lado o país na I Guerra Mun­dial.

O as­salto aos céus, a gesta de Ou­tubro que con­duziu à cons­ti­tuição da URSS cor­res­pondeu à mais pro­funda trans­for­mação so­cial na his­tória da Rússia e dos de­mais povos eman­ci­pados da tu­tela im­pe­rial, na an­tiga prisão dos povos, como era ape­li­dada a Rússia dos czares. Acima de tudo, re­pre­sentou um marco sa­li­ente na mi­lenar ca­mi­nhada hu­mana, ao inau­gurar, de­fi­ni­ti­va­mente, uma nova época his­tó­rica mun­dial, de tran­sição a uma for­mação eco­nó­mica e so­cial su­pe­rior, o so­ci­a­lismo.

Ao longo de um sé­culo XX tu­mul­tuoso, per­cor­rendo um ca­minho pi­o­neiro com­plexo e si­nuoso, e como tal não isento, também, de grandes erros e re­veses, a URSS de­sem­pe­nhou um papel ful­cral nas grandes con­quistas dos tra­ba­lha­dores e avanços li­ber­ta­dores da hu­ma­ni­dade, do início do pro­cesso de cons­trução so­ci­a­lista à li­ber­tação dos povos opri­midos e o fim dos im­pé­rios co­lo­niais; da der­rota do nazi-fas­cismo na mais mor­tí­fera das guerras que o mundo co­nheceu ao triunfo das novas re­vo­lu­ções so­ci­a­listas e emer­gência do campo so­ci­a­lista na cena in­ter­na­ci­onal. No nosso país, a longa re­sis­tência an­ti­fas­cista e o triunfo da Re­vo­lução da Abril trans­porta igual­mente as suas marcas. Ironia da his­tória, o pró­prio mo­delo eu­ropeu de «Es­tado so­cial» er­guido na Eu­ropa ca­pi­ta­lista do pós-guerra seria im­pen­sável sem o con­tri­buto re­vo­lu­ci­o­nário de Ou­tubro, o pres­tígio gran­jeado pela URSS e o peso da luta dos tra­ba­lha­dores que animou (facto com­pro­vado com o ad­vento do novo pa­ra­digma ne­o­li­beral e o pau­la­tino des­man­telar do «wel­fare state» im­postos após o fim da URSS).

 

A pro­cla­mação da URSS er­gueu-se sobre os es­com­bros da velha Rússia. Quando os bol­che­vi­ques to­maram o poder, o vasto Im­pério Russo – en­cer­rando mais de 100 povos, et­nias e lín­guas – en­con­trava-se num pro­cesso ace­le­rado de de­sin­te­gração. Após a re­vo­lução, o go­verno so­vié­tico propôs uma paz sem ane­xa­ções e in­dem­ni­za­ções de guerra e a apli­cação do di­reito à au­to­de­ter­mi­nação. Havia re­jei­tado o pa­ga­mento das dí­vidas do an­tigo poder. Uma di­plo­macia re­vo­lu­ci­o­nária ame­a­çava en­terrar a po­lí­tica de acordos se­cretos e de­si­guais na cena in­ter­na­ci­onal. A so­bre­vi­vência da re­vo­lução obri­gara porém à as­si­na­tura, em Março de 1918, do tra­tado de Brest-Li­tovsk com a Ale­manha, que Lé­nine qua­li­ficou de «paz obs­cena».

O novo poder passou o du­rís­simo exame do blo­queio eco­nó­mico das «po­tên­cias ali­adas» e da guerra civil e in­ter­venção mi­litar es­tran­geira (1918-1922), através do en­vol­vi­mento de con­tin­gentes mi­li­tares de 14 países, in­cluindo a Ale­manha, França, Grã-Bre­tanha, Es­tados Unidos e Japão, numa de­mons­tração nodal da con­ver­gência de classe entre as prin­ci­pais forças be­li­ge­rantes da I Guerra Mun­dial, re­pre­sen­tada na Rússia pela Guarda Branca apoiada pelos agres­sores ex­ternos. Chur­chill dava o mote à ca­beça dos fal­cões, na cam­panha de agressão contra o poder so­vié­tico que ten­tava «es­tran­gular a cri­ança no berço» (mais tarde, finda a II Guerra Mun­dial, es­teve entre os que che­garam a ad­vogar um ataque nu­clear pre­ven­tivo contra a URSS).

No mo­mento em que os EUA e a NATO travam contra a Fe­de­ração Russa, por via da Ucrânia, uma guerra cada vez mais di­recta, as­su­mindo o de­si­de­rato de isolar e en­fra­quecer a Rússia e pro­mover uma mu­dança de poder em Mos­covo, é opor­tuno lem­brar que ainda em De­zembro de 1917 a In­gla­terra, EUA e França ha­viam acor­dado a di­visão da Rússia em es­feras de in­fluência e que no início de 1918, o pre­si­dente norte-ame­ri­cano Wilson, agra­ciado no ano se­guinte com o Nobel da Paz, de­fendia o des­mem­bra­mento da Rússia so­vié­tica, dis­so­nância crassa com a apre­goada de­fesa da «li­ber­dade dos povos a dis­porem de si pró­prios». Então, grandes cam­pa­nhas pú­blicas contra a in­ter­venção im­pe­ri­a­lista na Rússia so­vié­tica ti­veram lugar na velha Eu­ropa e EUA, in­cluindo mo­tins nas tropas ex­pe­di­ci­o­ná­rias, ele­mento que im­pediu um maior en­vol­vi­mento mi­litar e di­taria a sua re­ti­rada.

Duas dé­cadas vol­vidas da for­mação da URSS, o Exér­cito Ver­melho im­punha-se na ba­talha de Sta­li­ne­grado que in­verteu o curso da II Guerra Mun­dial. O povo so­vié­tico pas­sara a mais dura prova do fogo. Quinze anos mais tarde a União So­vié­tica inau­gu­rava a era es­pa­cial.

 

A URSS existiu 69 anos e o poder so­vié­tico na Rússia 74 anos. A de­sin­te­gração da URSS, ar­ras­tando a época de re­fluxo que lhe su­cede e todo um con­junto de con­sequên­cias mar­ca­da­mente ne­ga­tivas no plano mun­dial – re­a­li­dade, cuja in­ci­dência par­ti­cular é bem vi­sível na Rússia con­tem­po­rânea e nos países do es­paço pós-so­vié­tico – não apagam, con­tudo, o sig­ni­fi­cado da exis­tência e per­curso his­tó­ricos da URSS. A sua trans­cen­dência con­ti­nuará a marcar o mundo no nosso tempo, pe­rante o apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e a tra­jec­tória de de­clínio re­la­tivo das suas prin­ci­pais po­tên­cias, com os EUA à ca­beça, en­cer­rando riscos e ame­aças sem pre­ce­dentes para a hu­ma­ni­dade (em todas as ver­tentes, da se­gu­rança e paz mun­diais aos planos po­lí­tico, eco­nó­mico, so­cial, am­bi­ental-cli­má­tico, etc.).

O sopro da epo­peia de Ou­tubro vive e vi­verá na re­sis­tência e lutas re­no­vadas dos povos e ex­plo­rados. A ma­triz re­vo­lu­ci­o­nária her­dada da sua ex­pe­ri­ência, pese as di­fe­renças de tempo e cir­cuns­tân­cias, as es­pe­ci­fi­ci­dades ob­jec­tivas e sub­jec­tivas, está pre­sente nos pro­cessos que per­sistem no ob­jec­tivo do so­ci­a­lismo, ca­bendo sa­li­entar a cen­tra­li­dade do pro­cesso de mo­der­ni­zação so­ci­a­lista e re­vi­ta­li­zação na­ci­onal con­du­zido pelo PCC na China, en­ca­rada pelos EUA como o grande ad­ver­sário e ameaça à ac­tual ordem mun­dial.

 

O de­sa­pa­re­ci­mento da URSS, con­tra­ri­ando a von­tade lar­ga­mente mai­o­ri­tária ex­pressa pelos ci­da­dãos so­vié­ticos no re­fe­rendo de 17 de Março de 1991, re­pre­sentou uma imensa tra­gédia para os seus povos. No con­texto da Guerra Fria, os efeitos pro­fundos do pro­cesso de es­tag­nação e perda re­la­tiva da ca­pa­ci­dade eco­nó­mica do mo­delo con­for­mado na URSS, ali­ados à bu­ro­cra­ti­zação cor­ro­siva da vida po­lí­tica e so­cial, aca­baram por con­duzir à com­pleta de­ge­ne­res­cência po­lí­tica e ide­o­ló­gica do PCUS na se­gunda me­tade dos anos 80. O des­ca­labro da pe­res­troika – que apon­tava ao am­bi­cioso ob­jec­tivo de uma vasta re­es­tru­tu­ração do so­ci­a­lismo so­vié­tico no sen­tido de de­satar o seu po­ten­cial –, a perda total de prin­cí­pios e de rumo, de­sem­bo­cando na traição e ca­pi­tu­lação ao mais alto nível da di­recção so­vié­tica, e a rá­pida de­ses­ta­bi­li­zação da si­tu­ação eco­nó­mica e so­cial im­pu­seram, na es­fera na­ci­onal, o res­sur­gi­mento das ten­sões ét­nicas e na­ci­o­na­lismo de­sen­freado. A guerra na Ucrânia é hoje a ex­pressão mais grave e in­ci­siva da de­sin­te­gração da URSS.

Neste âm­bito, devem ser re­jei­tados os ata­ques de re­pre­sen­tantes do poder russo, in­cluindo Pútin, contra a po­lí­tica na­ci­onal de Lé­nine e do par­tido bol­che­vique. A re­tó­rica anti-so­vié­tica é ex­pressão da na­tu­reza e op­ções de classe do re­gime russo, mas também dos seus di­lemas. Cons­titui uma ma­ni­pu­lação gros­seira da his­tó­rica e bran­queia res­pon­sa­bi­li­dades pró­prias no pro­cesso de des­truição da URSS, cujas con­sequên­cias trá­gicas a di­recção russa rei­te­ra­da­mente re­co­nheceu. E é um sinal de fra­queza face aos ob­jec­tivos da larga ofen­siva em curso di­ri­gida pelos EUA.

Na Rússia e no es­paço pós-so­vié­tico cresce a evi­dência de que não ha­verá re­torno a uma via de so­be­rania e pro­gresso e real mo­vi­mento eman­ci­pador que não levem em linha de conta, em con­di­ções na­tu­ral­mente di­fe­rentes e com ele­mentos novos, as ban­deiras e ideais de Ou­tubro e o le­gado so­vié­tico, ab­sor­vendo as li­ções po­si­tivas e ne­ga­tivas da ex­pe­ri­ência in­ter­rom­pida de luta re­vo­lu­ci­o­nária e cons­trução da nova so­ci­e­dade, livre dos an­ta­go­nismos e ex­plo­ração de classe.