A Revelação e o Oculto

Marta Pinho Alves

Ca­ta­rina Vas­con­celos parte da sua fa­mília para re­flectir sobre o pas­sado re­cente do País

Em A Me­ta­mor­fose dos Pás­saros, Ca­ta­rina Vas­con­celos fala sobre a sua fa­mília, cen­trando-se na fi­gura da avó, que não chegou a co­nhecer pes­so­al­mente, mas que sempre a im­pres­si­onou pro­fun­da­mente por via dos re­latos fa­mi­li­ares. Este é o ponto de par­tida para a au­tora se re­velar a si mesma, à sua iden­ti­dade e au­to­de­fi­nição. A certo ponto, dis­corre também sobre a sua mãe, fa­le­cida pre­co­ce­mente, e sobre a dor e a per­ple­xi­dade cau­sada por essa perda. Todos os seg­mentos evocam os fan­tasmas que a (nos) ha­bitam e de­ter­minam. Numa en­tre­vista, Ca­ta­rina Vas­con­celos afirmou: «A casa dos meus avós em Lisboa es­tava a ser ven­dida e nós tí­nhamos apenas um mês para filmar no seu in­te­rior. Eu sabia que queria re­gistar a casa, sabia que queria ficar com a casa em ima­gens. No úl­timo dia, es­tava a olhar para os ob­jetos e de re­pente fi­quei muito co­mo­vida por pensar que aqueles ob­jetos não eram só ob­jetos, (...) eram uma evo­cação de uma pessoa, da Be­a­triz.»

Esta evi­dência, esta re­ve­lação sobre a im­por­tância dos ob­jetos de­cla­rada pela au­tora, é a ma­triz da cons­trução ima­gé­tica do filme, da edi­fi­cação de cada um dos seus planos e da de­fi­nição da mise-en-scène. Cada um dos ele­mentos ma­te­riais é cui­da­do­sa­mente co­lo­cado no es­paço, no seu es­paço, num dado es­paço, para ser capaz de se co­mu­nicar con­nosco e de nos in­ter­pelar. A apre­sen­tação dos ob­jetos, con­tudo, não nos é feita de modo ime­diato. É pre­ciso olhá-los de di­fe­rentes pers­pe­tivas, pers­crutá-los, de­termo-nos nos seus de­ta­lhes e frag­mentos (muitas vezes são-nos mos­trados pri­meiro de forma sec­ci­o­nada), per­correr ca­mi­nhos até eles, afastar as múl­ti­plas cor­tinas que os ocultam, le­vantar os panos diá­fanos que os tapam, es­preitar pelas di­versas ja­nelas que os in­ter­me­deiam e emol­duram, ob­servar os es­pe­lhos que in­di­re­ta­mente os re­fletem. Po­demos di­vidir os ob­jetos em duas ca­te­go­rias, em­bora cada um deles possa em di­fe­rentes mo­mentos, ou mesmo em si­mul­tâneo, as­sumi-las ambas. Uma ca­te­goria é a dos ob­jectos que re­levam, evi­den­ciam, e a outra as dos que es­condem, en­co­brem.

Há ob­jectos que são ves­tí­gios do pas­sado, da his­tória e das es­tó­rias da­quela fa­mília.

A placa evo­ca­tiva dos olhos de Santa Luzia é um dos pri­meiros ele­mentos ima­gé­ticos do filme. Este ob­jecto, res­ga­tado pelo avô da sua casa para o acom­pa­nhar na sua úl­tima re­si­dência, re­pre­senta a crença re­li­giosa que en­formou o modo de vida e as nar­ra­tivas fa­mi­li­ares, mas si­mul­ta­ne­a­mente evoca a ati­tude de mi­nu­ciosa ob­ser­vação de Vas­con­celos sobre a sua origem.

Um ca­valo ma­rinho apa­rece por duas vezes, pou­sado sobre a orelha pri­meiro da avó Be­a­triz e de­pois da tia Te­resa. As mu­lheres olham o ho­ri­zonte através de uma ja­nela com vista para o mar, não temos acesso ao seu rosto, a sua ex­pressão é in­vi­si­bi­li­zada. O ca­valo ma­rinho é sím­bolo da jor­nada ma­rí­tima do avô, livre e quase sempre au­sente e da mu­lher que es­pera pa­ci­ente e imóvel cons­ci­ente e anu­ente da sua con­dição fe­mi­nina.

Os ob­jectos dos seus afectos e me­mó­rias fa­mi­li­ares, tal como já acon­te­cera na re­flexão sobre o papel da mu­lher, en­tre­tecem-se com os temas so­ciais e po­lí­ticos que in­qui­etam a ci­ne­asta. A co­leção de selos do avô são mo­tivo para a to­mada de po­sição sobre o co­lo­ni­a­lismo por­tu­guês e o Es­tado Novo.

Ou­tros ob­jectos há que tornam opaca a com­pre­ensão. Estes re­lem­bram que ne­nhuma es­tória é li­near ou pode ser to­tal­mente en­ten­dida. São múl­ti­plas as ca­madas de sen­tido e di­fe­rentes as per­cep­ções. Além disso, a me­mória de­turpa e re­cons­trói.

O avô man­dava no­tí­cias por carta para a fa­mília. Con­tava es­tó­rias quo­ti­di­anas e re­a­fir­mava as sau­dades da mu­lher e dos fi­lhos. A estes cabia ima­ginar esta vida que não co­nhe­ciam re­al­mente.

Ja­cinto, o pai de Ca­ta­rina Vas­con­celos, que afinal se chama Hen­rique (e apenas Ja­cinto no filme com pro­pó­sitos poé­ticos), raras vezes surge de modo frontal, evi­dente, de­so­cul­tado. É uma cons­trução da sua filha, é a sua in­ter­pre­tação de quem é e do que pensa o pai.

A em­pre­gada da casa dos avôs, Zul­mira, é uma fi­gura mi­to­ló­gica, re­criada pelo ima­gi­nário in­fantil dos tios cuja ca­ra­te­ri­zação re­a­lista não cabe neste re­lato.




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