José Saramago, um escritor com o seu povo

Domingos Lobo

A obra de José Sa­ra­mago traça uma pros­pe­tiva in­qui­ri­dora do real e do his­tó­rico

O livro Sa­ra­mago, um es­critor com o seu povo, lan­çado sim­bo­li­ca­mente na aber­tura da Feira do Livro de Lisboa, com o qual o PCP ini­ciou um amplo pro­grama de de­bates, en­con­tros, ex­po­si­ções, re­ci­tais in­cluídos no ano de Co­me­mo­ração Cen­te­nária e de ho­me­nagem ao autor de Le­van­tado do Chão, ini­ci­a­tiva que cul­minou com a re­cente Con­fe­rência, na qual, ao longo de um dia, vasto leque de ora­dores re­flec­tiram sobre as obras de Sa­ra­mago, o seu per­curso cí­vico e cri­a­tivo e a im­por­tância e ac­tu­a­li­dade que a sua pro­dução li­te­rária mantém, num mundo de­si­gual e in­justo, mundo do poder e da usura, que ele acusou em Es­to­colmo de as­sistir «in­di­fe­rente à morte de mi­lhões de pes­soas pela fome».

A partir de textos que Sa­ra­mago pro­duziu para in­ter­ven­ções que re­a­lizou no âm­bito da sua mi­li­tância no PCP pu­bli­cados no Avante! que evi­den­ciam e su­bli­nham a in­tensa ac­ti­vi­dade po­lí­tica do autor de A Ca­verna, «em vá­rios mo­mentos de­ci­sivos da nossa his­tória co­lec­tiva». Nesta co­lec­tânea, fun­da­mental para se co­nhecer a fa­ceta mi­li­tante e po­li­ti­ca­mente em­pe­nhada de um es­critor de génio, que sempre afirmou a sua fi­li­ação par­ti­dária, de­cla­rando que se a atri­buição do Prémio Nobel de Li­te­ra­tura o obri­gasse a aban­donar o seu Par­tido, ne­garia o Prémio, conta, para além dos textos in­ter­ven­tivos de José Sa­ra­mago, e de ou­tros textos sobra a sua vida e obra igual­mente e pu­bli­cados no Avante! com o texto da in­ter­venção de Je­ró­nimo de Sousa na sessão cul­tural de apre­sen­tação do pro­grama das Co­me­mo­ra­ções do Cen­te­nário, re­a­li­zada no Fórum Lisboa, a 30 de Ou­tubro de 2021, na qual se re­fere que em toda a obra de Sa­ra­mago «está pre­sente o seu pe­ne­trante olhar sen­sível e ar­guto e pro­fun­da­mente hu­mano sobre os males do mundo».

José Sa­ra­mago, um es­critor com o seu povo reúne ainda um vasto nú­mero de textos en­saís­ticos e de­poi­mentos, sobre o per­curso po­lí­tico e li­te­rário de um dos mai­ores vultos da cul­tura e da li­te­ra­tura uni­versal, da au­toria de Isabel Araújo Branco, Mo­desto Na­varro, Ma­nuel Gusmão, Ilda Fi­guei­redo, Carlos Car­va­lhas, Álvaro Cu­nhal, Mar­ga­rida Ma­chado, Cor­reia da Fon­seca, Mário de Car­valho, José Ma­nuel Mendes, Jorge Sa­ra­bando, Jorge Cor­deiro, Ana­bela Fino, Mário Cas­trim, Alice Vi­eira, Le­andro Mar­tins, Au­rélio Santos e Do­mingos Lobo.

A obra ro­ma­nesca de José Sa­ra­mago, a que po­demos con­si­derar dentro de um uni­verso te­má­tico que in­ven­taria e re­flecte esse es­tranho e equí­voco de­sígnio do ser por­tu­guês, ou seja, da sin­gu­la­ri­dade his­tó­rica, cul­tural e idi­os­sin­crá­tica das gentes que desde o sé­culo XII ha­bitam este rec­tân­gulo ibé­rico, que na di­ver­si­dade tem­poral que a obra de Sa­ra­mago abarca, in­clui tí­tulos tão di­versos como Ma­nual de Pin­tura e Ca­li­grafia, Le­van­tado do Chão, Me­mo­rial do Con­vento, O Ano da Morte de Ri­cardo Reis, A Jan­gada de Pedra e His­tória do Cerco de Lisboa e esse per­tur­bador ro­mance que é A Ca­verna – re­cor­rência a que Sa­ra­mago só vol­tará, com es­fu­zi­ante ironia, num dos seus bri­lhantes tí­tulos fi­nais: A Vi­agem do Ele­fante, ciclo que in­clui ainda Cla­ra­bóia, esse mag­ní­fico ro­mance dos pri­mór­dios da sua in­cursão ro­ma­nesca.

Con­si­de­rando-se assim, em de­fi­nição con­jun­tural, a sua obra que se pros­pe­tiva in­qui­ri­dora do real e do his­tó­rico, textos que na sua sin­gu­la­ri­dade con­fi­guram os mé­todos de abor­dagem ana­lí­tica, de agi­li­zação lin­guís­tica, essa pers­pec­tiva lú­cida e as­ser­tiva sobre uma certa re­a­li­dade por­tu­guesa, que es­tru­turam o seu o modo li­te­rário, as plu­rais do­mi­nantes es­té­ticas que es­culpem o dis­curso fic­ci­onal sa­ra­ma­guiano, a sua marca on­to­ló­gica e a uni­ver­sa­li­dade dos temas que o autor irá de­sen­volver em tí­tulos como En­saio Sobre a Ce­gueira, En­saio Sobre a Lu­cidez, O Homem Du­pli­cado, As In­ter­mi­tên­cias da Morte, Caim e nesse co­ra­joso, lu­ci­dís­simo e mal-amado, pelos con­ser­va­do­rismos mi­li­tantes, texto que é O Evan­gelho Se­gundo Jesus Cristo. Deste livro de Sa­ra­mago dirá Álvaro Cu­nhal ser «um olhar sobre a na­tu­reza hu­mana, suas con­tra­di­ções, suas forças e suas fra­quezas», acres­cen­tando de modo ge­né­rico, que a sua obra é «mo­tivo de ale­gria para todos os por­tu­gueses pelo re­co­nhe­ci­mento uni­versal do es­critor e da li­te­ra­tura por­tu­guesa, de ale­gria para os co­mu­nistas por­tu­gueses por se tratar de um seu ca­ma­rada».

Na obra sin­gular que nos legou, na sua plu­ra­li­dade ima­gé­tica, no hu­mano que a edi­fica, en­con­tramos o es­plendor da lin­guagem, os sig­ni­fi­cantes pe­renes que, di­ver­sa­mente, atra­vessam essa es­crita e a tornam rara, ab­sor­vente, má­gica e lú­cida.

Que fa­remos nós, hoje e aqui, com esse le­gado único, com esse mo­nu­mento de pa­la­vras que os li­vros de José Sa­ra­mago são? Este livro José Sa­ra­mago, um es­critor com o seu povo ajuda-nos nessa he­rança nossa, a en­tender me­lhor a di­mensão dos uni­versos que o seu labor fic­ci­onal nos legou.




Mais artigos de: Argumentos

Lutar contra a indiferença e a discriminação

A 3 de Dezembro comemora-se o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, criado pela Assembleia Geral da ONU, em 1992, com o objectivo de promover uma maior compreensão dos problemas dessas pessoas e mobilizar a sociedade para a defesa dos seus direitos, bem estar e dignidade. Todos os...