Cantar a América e o Mundo inteiro

Manuel Pires da Rocha

Os mo­vi­mentos re­vo­lu­ci­o­ná­rios são mes­tres na es­crita das can­ções feitas para serem fer­ra­menta trans­for­ma­dora

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Se mais provas não hou­vesse, seria a Amé­rica La­tina mostra evi­dente do ta­lento da His­tória nas artes da com­po­sição e da co­re­o­grafia. Ta­lento acres­cen­tado, claro está, ao que aos hu­manos foi dado – trans­formar o que se vê e sente na­quilo que se quer sentir e ver. E se uns pas­saram de um lado ao outro por von­tade pró­pria e cu­ri­o­si­dade de ver para lá do ho­ri­zonte, ou­tros à vi­agem foram obri­gados por mal­dades que são as da ex­plo­ração do homem pelo homem ou o fugir à fome para terras de maior far­tura.

À Amé­rica che­garam es­cravos e mi­grantes. Le­varam con­sigo (os que lá che­garam) a força de tra­balho, que con­vinha às ri­quezas da classe do­mi­nante. E le­varam também ou­tras con­ve­ni­ên­cias que eram só suas e os agar­ravam à con­dição de seres hu­manos, na­queles lu­gares onde os que­riam bestas. Nuns lados mais, nou­tros menos, a gente que ali chegou, de um cais a outro cais, juntou, à gente que ali es­tava, lin­gua­jares, en­to­ares e danças. Nas datas in­certas em que acon­tece o im­pre­visto nas­ceram mes­ti­ça­gens a que cha­ma­riam Rumba, Plena, Cumbia, Samba, Ma­rimba, Landó, Jo­ropo, Me­rengue, Cha­ca­rera, Punta e tantos mais nomes e so­ta­ques quantos os na­tu­rais en­con­tros e lu­gares em que acon­te­ceram e acon­tecem.

Lin­gua­jares, en­to­ares e danças ou, dito por ou­tras pa­la­vras, verso de ile­trado, mú­sica de rua e passo de pé des­calço. Por dis­tração ou de­sin­te­resse, os dis­tri­bui­dores dos te­souros da Ci­vi­li­zação não fur­taram às des­va­lidas sortes o im­pulso cri­a­tivo, que é a ri­queza do povo. Brecht no­meou, em poema co­nhe­cido, os que er­gueram a Tebas das sete portas e a Ba­bi­lónia tantas vezes des­truída; e a Mu­ralha da China, os Arcos da grande Roma e a Bi­zâncio dos pa­lá­cios. Talvez Brecht tenha es­co­lhido as obras de durar, por serem mais vi­sível pa­tri­mónio. Mas deixou im­plí­cito que quem gár­gulas es­culpiu, algum som lhes ima­ginou nas bocas es­can­ca­radas; e quem trans­portou as pe­dras, em algum canto di­luiu o es­forço do im­pulso; quem no sol-a-sol se con­sumiu, nalgum baile se ofe­receu à ven­tura de existir; quem se calou na de­si­gual di­visão do pão, em algum mo­mento re­voltas terá ver­se­jado. A mú­sica, a pa­lavra e a dança são o pri­meiro al­forge da Hu­ma­ni­dade, o bem mais certo que con­sigo leva quem nada tem para levar – seja daqui para ali, ou de an­tanho para o devir, entre a faina e o en­tretém, da ce­le­bração ao pro­testo.

Já se falou dos ta­lentos da His­tória na arte da com­po­sição. Mas faltou dizer que os mo­vi­mentos re­vo­lu­ci­o­ná­rios e de pro­testo são mes­tres na es­crita das can­ções feitas para serem fer­ra­menta trans­for­ma­dora. Um pouco por todo o lado as can­ções pas­saram, de ge­ração em ge­ração, pro­posta al­ter­na­tiva ao ruído per­sis­tente da in­jus­tiça. Le Temps Des Ce­rises da Co­muna de Paris, Warshawi­anka da Re­vo­lução de Ou­tubro, We Shall Overcome da luta pelos di­reitos civis nos EUA, Avante, Ca­ma­rada da luta contra o fas­cismo por­tu­guês, Grân­dola, Vila Mo­rena da Re­vo­lução de Abril, A In­ter­na­ci­onal das lutas todas pelo so­ci­a­lismo, per­ma­necem no can­ci­o­neiro dos mo­vi­mentos de massas sempre que a cons­ci­ência de classe se am­plia e ameaça a es­ta­bi­li­dade dos es­tados ca­pi­ta­listas.

Talvez em ne­nhum lado, como nas terras da Amé­rica La­tina, a canção tenha tido tão grande papel mo­bi­li­zador, tão ampla ex­pressão ar­tís­tica, tão grande sig­ni­fi­cado no dizer das von­tades dos co­muns. Nomes como Carlos Pu­ebla, Vi­o­leta Parra, Victor Jara, Da­niel Vi­gli­etti, Atahu­alpa Yu­panqui, Chico Bu­arque, Silvio Ro­dri­guez, Mer­cedes Sosa, Gon­za­guinha e mo­vi­mentos como a Nueva Trova Cu­bana são au­tores do imenso can­ci­o­neiro que o sé­culo XX dis­po­ni­bi­lizou aos povos para que o en­contro das von­tades pu­desse ser coro também. Nestes dias de com­bate e re­sis­tência na Bo­lívia, no Brasil, no Equador, no Peru, em Cuba, na Ve­ne­zuela, na Ar­gen­tina, no Mé­xico, na Ni­ca­rágua e nos tantos ter­ri­tó­rios da Amé­rica La­tina, Victor Jara canta com voz re­no­vada e ur­gente (nos 50 anos do seu as­sas­si­nato) um es­tri­bilho uni­versal: «Yo no canto por cantar / ni por tener buena voz, / canto porque la gui­tarra / tiene sen­tido y razón.»




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