Burla ao quadrado no «reequilíbrio» das PPP

Os pe­didos de re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro (PREF) dos con­tratos de con­cessão das par­ce­rias pú­blico-pri­vadas (PPP) cons­ti­tuem uma burla ao qua­drado, na me­dida em que vi­olam os pró­prios pres­su­postos da burla ini­cial – as pró­prias PPP. Por duas vezes, os bur­ladossão o Es­tado e o povo por­tu­guês; os bur­lões são os que ne­go­ceiam e as­sinam os con­tratos.

Os con­tratos PPP ga­rantem aos pri­vados «risco zero» e lucro total

Nas re­ne­go­ci­a­ções de 2013-2014, os con­ces­si­o­ná­rios foram li­ber­tados até da obri­gação de ma­nu­tenção das auto-es­tradas

As par­ce­rias pú­blico-pri­vadas san­gram o Es­tado por­tu­guês. Cada ano, sem qual­quer novo in­ves­ti­mento as­so­ciado, mais de mil mi­lhões de euros voam para os par­ceiros pri­vados. Estes mesmos re­cursos, de­pois, faltam para a ad­mi­nis­tração di­recta dos ser­viços pú­blicos, que fun­ci­onam quase sempre num dé­fice per­ma­nente de re­cursos hu­manos, téc­nicos e fi­nan­ceiros.

O Or­ça­mento do Es­tado para 2023 in­cor­pora uma trans­fe­rência re­corde de 1,4 mil mi­lhões de euros para as PPP. Além disso, in­clui a pro­visão ne­ces­sária para des­pesas acres­cidas no valor de 1,1 mil mi­lhões, de­vido à su­cessão de pe­didos de re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro.

O de­talhe destes nú­meros, apre­sen­tado na ta­bela «O que está para vir», as­senta no re­la­tório da UTAO (Uni­dade Téc­nica de Apoio Or­ça­mental, que fun­ciona no âm­bito da Assem­bleia da Re­pú­blica) sobre a pro­posta de OE 2023.

Trocam van­ta­gens por pro­pa­ganda

Se os con­tratos das PPP são maus, a sua re­ne­go­ci­ação é, por norma, ainda pior. Nestas ne­go­ci­a­ções, os pri­vados trocam van­ta­gens para si pró­prios por opor­tu­ni­dades de pro­pa­ganda para os (seus) re­pre­sen­tantes do poder po­lí­tico.

Veja-se as re­ne­go­ciaçõesfeitas pelo governo PSD/​CDS, em 2013-2014.Os con­ces­si­o­ná­rios das auto-es­tradasaca­baram li­ber­tados até da obri­gação de ma­nu­tenção! A pro­pa­ganda ofi­cial su­bli­nhava a pou­pança de uns euros, nos pa­ga­mentos do Es­tado aos con­ces­si­o­ná­rios. Mas, na re­a­li­dade, os en­cargos fu­turos trans­fe­ridos para o Es­tado eram muito mai­ores que essas pou­panças.

Os con­tratos de par­ceria entre pú­blico e pri­vado (PPP) ga­rantem sempre ao pri­vado a pos­si­bi­li­dade de so­li­citar a re­ne­go­ci­ação, caso a con­cessão não es­teja a dar os lu­cros de­se­jados. Fica ga­rantido o «risco zero» para o pri­vado, pre­ci­sa­mente o con­trário daquilo que a pro­pa­ganda pa­pa­gueia, quando apre­senta o lucro dos pri­vadoscomo justa re­com­pensa pelo «risco do ne­gócio».

Se a ga­so­lina au­mentar 10 por cento, é na­tural que as ope­ra­doras queiram au­mentar os preços. Se isso não for pos­sível, pedem um re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro da con­cessão, para terem a sua taxa de lucro mí­nima. Mas, se a ga­so­lina baixar 10 por cento, au­menta a taxa de lucro, assim re­com­pen­sando apenas o ar­ro­jado in­ves­tidor, sem qual­quer be­ne­fício para o Es­tado. É ba­si­ca­mente esta a ló­gica dos con­tratos PPP.

Tal ló­gica já cria uma si­tu­ação de ganha-ganha a favor do par­ceiro pri­vado. Mas a prá­tica vem in­tro­duzir ainda mais ele­mentos per­versos.

A um pe­dido de re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro, segue-se uma fase de ne­go­ci­ação entre pú­blico e pri­vado, para al­terar o con­trato de con­cessão.

Se houver um acordo que sa­tis­faça o par­ceiro pri­vado, o con­trato al­tera-se: au­mentam o preço, pro­longam a con­cessão, etc. Se não existir um acordo sa­tis­fa­tório para o pri­vado, este avança com um pe­dido de re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro, a de­cidir num tri­bunal ar­bi­tral (TA).

Tri­bu­nais ar­bi­trais no centro da burla

A in­clusão destes tri­bu­nais ar­bi­trais nos con­tratos entre o pú­blico e o pri­vado é uma peça cen­tral na burla. O PCP já propôs que esta pos­si­bi­li­dade fosse for­mal­mente ex­cluída.

Um tri­bunal ar­bi­tral, que vai ava­liara va­li­dade da pre­tensão do par­ceiro pri­vado, é com­posto por três pes­soas: uma es­co­lhida pelo pri­vado, outra pelo pú­blico e a ter­ceira pelas duas pri­meiras.

Por regra, como re­sultadesta com­po­sição, o TA de­cide a favor do pri­vado. Ao Es­tado resta então re­correr aos tri­bu­nais, pe­dindo a anu­lação das de­ci­sões dos tri­bu­nais ar­bi­trais.

Em tri­bunal, o Es­tado perde quase in­va­ri­a­vel­mente. É julgada a va­li­dade do poder de­ci­sório do tri­bunal ar­bi­tral, e não tanto a ma­téria de facto. E o Es­tado, no mo­mento da ela­bo­ração dos con­tratos de con­cessão, aceitou o poder desses tri­bu­nais ar­bi­trais!

O ac­tual Governo não aceita proibir o re­curso a tri­bu­nais ar­bi­trais nos con­tratos pú­blicos, em­borapa­trocine vá­rias ac­ções ju­di­ciais a pedir a anu­lação de de­ci­sões desses «ár­bi­tros». Fica assim pa­tente que o Go­verno não quer acabar com a burla do «re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro».

Re­cordamos aqui al­guns exem­plos con­cretos de pe­didos de re­e­qui­lí­brio fi­nan­ceiro. Cada um dos casos fala por si, ene­gre­cendo um quadro pouco edi­fi­cante para o Es­tado e para o re­gime das PPP.


Alta velocidade para «lucros esperados»

A PPP para a li­gação fer­ro­viária a Ma­drid, em alta ve­lo­ci­dade, es­tava con­tra­tu­a­li­zada com o con­sórcio ELOS, mas o Tri­bunal de Contas re­cusou o visto ao con­trato.

O governo de Passos Co­elho apro­veitou para can­celar a em­prei­tada e a PPP.

O par­ceiro pri­vado re­correu a um tri­bunal ar­bi­tral e este de­cidiu que o Es­tado tinha de in­dem­nizar o pri­vado pelos custos do pro­cesso (o que se po­deria con­si­derar na­tural) e igual­mente pela ex­pec­ta­tiva de lu­cros da ELOS.

Sem visto do Tri­bunal de Contas, o con­trato não é vá­lido. Como pode o Es­tado ser obri­gado a in­dem­nizar al­guém por causa de um con­trato in­vá­lido? É o que per­gunta o Go­verno, no pe­dido de anu­lação da de­cisão do Tri­bunal Ar­bi­tral.

Só que os tri­bu­nais têm-se li­mi­tado a julgar a va­li­dade ju­rí­dica do re­curso a um tri­bunal ar­bi­tral.

Já o facto de um pri­vado re­ceber 192 mi­lhões por frus­tradas ex­pec­ta­tivas de lu­cros, ga­nhando 192 mi­lhões por uma obra que não exe­cutou – só o PCP o tem achado es­can­da­loso.


Pagar mesmo quando a obra não existe

O pro­cesso da sub­con­cessão ro­do­viária do Al­garve Li­toral ainda está em tri­bunal ar­bi­tral, que já con­denou a IP, cau­te­lar­mente, a pagar 49 mi­lhões de euros, em 2021, e 14 mi­lhões, em 2022. O pe­dido de in­dem­ni­zação global é de 445 mi­lhões.

Tudo re­monta a uma re­ne­go­ci­ação do con­trato a que o Tri­bunal de Contas re­cusou o visto, pois os pa­ga­mentos ao Es­tado di­mi­nuíam de 168 para 28 mi­lhões de euros. O con­trato foi al­te­rado e o visto acabou por ser dado.

Só que uma audi­toria do Tri­bunal de Contas viria a re­velar que os par­ceiros – os bancos fi­nan­ci­a­dores, a Es­tradas de Por­tugal (IP, Infra-es­tru­turas de Por­tugal, desde 2015, com a Refer) e o con­sórcio pri­vado – ti­nham con­tor­nado o con­trato, por via de um anexo sobre «com­pen­sa­ções con­tin­gentes», que pas­savam a ser de­vidas pra­ti­ca­mente sem con­di­ções. A IP viu-se in­ti­mada pelo TC a deixar de pagar essas verbas e, ao mesmo tempo, con­de­nada pelo tri­bunal ar­bi­tral a pagá-las.

Nin­guém está preso, nem se­quer jul­gado, e o di­nheiro con­tinua a fluir do Es­tado para os pri­vados, mais uns mi­lhões para ali­mentar os grandes es­cri­tó­rios de ad­vo­gados.

O con­ces­si­o­nário pri­vado já re­cebeu mi­lhões de euros de uma obra que não re­a­lizou.

O Al­garve con­tinua sem ver so­lu­ci­o­nado o pro­blema da re­qua­li­fi­cação da EN 125.

 

A ANA quer e o Go­verno dá

De 2013 a 2021, a ANA (Grupo Vinci) re­gistou re­sul­tados lí­quidos po­si­tivos de 1110 mi­lhões de euros, já in­cluindo o pre­juízo de 79,7 mi­lhões que re­gistou em 2020, no pico dos im­pactos da pan­demia sobre o sector aéreo.

Con­se­guiu uma re­mu­ne­ração do ca­pital in­ves­tido su­pe­rior a 50 por cento!

Pois, apesar destes re­sul­tados, acha-se no di­reito de exigir mais 214 mi­lhões para re­e­qui­li­brar a con­cessão, por causa do ano 2020! E já in­formou que vai avançar para tri­bunal ar­bi­tral.

O Governo já está a ceder. Au­to­rizou o au­mento de 40 mi­lhões de euros, por ano, nas taxas de se­gu­rança ae­ro­por­tuá­rias. A isto soma-se a ce­dência aos in­te­resses da mul­ti­na­ci­onal no caso do novo ae­ro­porto de Lisboa.


O favor de re­ceber e de exigir

A PPP do Oce­a­nário de Lisboa é talvez a mais ex­tra­or­di­nária destas «parcerias».

O Oce­a­nário es­tava cons­truído e a fun­ci­onar, dava um lucro anual de cerca de 1,3 mi­lhões de euros, cum­pria a sua função pe­da­gó­gica, ci­en­tí­fica, cul­tural e lú­dica.

Em Julho de 2015, foi con­ces­si­o­nado, por 30 anos, à So­ci­e­dade Fran­cisco Ma­nuel dos Santos (SFMS). Aac­ci­o­nista mai­o­ri­tária do Grupo Je­ró­nimo Mar­tins (que em 2017 criou a Fun­dação Oceano Azul, a quem doou a con­cessão) pagou 114 mi­lhões de euros, uma parte ín­fima do custo da cons­trução do Oce­a­nário.

Na al­tura da con­cessão, foi anun­ciado o com­pro­misso da SFMS de in­vestir, a fundo per­dido, 40 mi­lhões de euros, nos pri­meiros dez anos, e de rein­vestir no pró­prio Oce­a­nário todo o re­sul­tado da con­cessão. Ou seja, re­cebeu um equi­pa­mento único no mundo, cons­truído pelo Es­tado por­tu­guês, e ainda se van­glo­riou, como se es­ti­vesse a fazer um favor ao País!

Du­rante os pri­meiros quatro anos da con­cessão, o Oce­a­nário teve lu­cros de 7,9 mi­lhões de euros, e re­a­lizou um in­ves­ti­mento de 11 mi­lhões de euros, in­te­gral­mente co­berto pelas re­ceitas pró­prias.

Che­gados a 2020, a COVID-19 abateu-se sobre o fun­ci­o­na­mento do Oce­a­nário, que re­gistou, em dois anos, um pre­juízo total de 7,8 mi­lhões de euros e reduziu o in­ves­ti­mento para menos de um mi­lhão de euros, nos dois anos.

Nada de «anormal», apesar de o facto ser de re­gistar, prin­ci­pal­mente por aqueles que acre­ditam que a gestão pri­vada é imune a este tipo de per­calços.

E, apesar do muito que pro­meteu quando re­cebeu a con­cessão, a em­presa co­locou um pe­dido de reequi­lí­brio fi­nan­ceiro, exi­gindo ser com­pen­sada com um pro­lon­ga­mento da con­cessão por mais 19 anos e meio.

 

A per­gunta que o Tri­bunal de Contas não fez

A opção por uma par­ceria pú­blico-pri­vada «de­verá jus­ti­ficar o value for money, isto é, evi­den­ciar van­ta­gens acres­cidas, em re­lação à opção tra­di­ci­onal de fi­nan­ci­a­mento di­recto, por via do Or­ça­mento do Es­tado, e não ser ali­cer­çada em mo­ti­va­ções de ín­dole or­ça­mental re­la­ci­o­nadas apenas com a con­ta­bi­li­zação off-ba­lance sheet da dí­vida pú­blica».

A tese é do Tri­bunal de Contas (TdC), que a in­clui no seu ma­nual «Li­nhas de Ori­en­tação (Guide Lines) e Pro­ce­di­mentos para o de­sen­vol­vi­mento de Au­di­to­rias Ex­ternas a PPP», pre­ten­dendo le­gi­timar uma «boa PPP», por via das «van­ta­gens acres­cidas».

Con­tudo, par­tindo de uma pers­pec­tiva da classe do­mi­nante, o TdC não as­sume que qual­quer PPP é, logo à par­tida, uma burla.

Ad­mitir uma «boa PPP», com o pri­vado a in­vestir e o Es­tado a re­mu­nerar esse in­ves­ti­mento, é uma po­sição que se des­mo­rona, mal surge uma sim­ples per­gunta: porque não in­veste o Es­tado di­rec­ta­mente?

É que, logo à par­tida, a «boa» re­mu­ne­ração que um pri­vado obtém numa PPP é sempre maior do que a taxa de juro que o Es­tado pa­garia pelo in­ves­ti­mento pú­blico. Se assim não fosse, o «bom» pri­vado não ga­nhava nada com a PPP e iria pro­curar outra fonte de lucro maior e mais rá­pido.

 

 



Anexos: