Em louvor e reconhecimento da pintura

Manuel Augusto Araújo

A re­tros­pec­tiva de João Abel Manda na SNBA é um «ma­ni­festo a favor da pin­tura»

«O meu pai tra­ba­lhou toda a vida a ouvir a mú­sica de Mo­zart», contou Isabel Manta numa das vi­sitas à ex­po­sição A Má­quina das Ima­gens, re­tros­pec­tiva de de­se­nhos e car­toons de João Abel Manta na Ci­da­dela de Cas­cais. Vi­sitar a re­tros­pec­tiva de pin­tura de João Abel Manta na So­ci­e­dade Na­ci­onal de Belas Artes (SNBA) faz res­soar essa frase, re­lem­brando uma afir­mação de Georg Lu­kács a Steiner de que seria im­pos­sível Mo­zart ser to­cado nas ce­le­bra­ções e nos campos de con­cen­tração nazis, o que muito ad­mirou o en­saísta in­glês que quando voltou a Lon­dres a dis­cutiu com mú­sicos e mu­si­có­logos, entre eles Ben­jamin Britten, para a co­tejar. Ao fim de uns quinze dias Britten te­le­fona-lhe. Tinha es­tado a rever as obras de Mo­zart: «Lu­kács, tem razão!».

Per­correr estas 250 pin­turas de João Abel Manta ex­postas na SNBA, desde os anos 60 e 70, so­bre­tudo as re­a­li­zadas de­pois de pelos anos 80 ter dada por finda a sua ac­ti­vi­dade de car­to­o­nista e ilus­trador, de­di­cando-se ex­clu­si­va­mente à pin­tura, é um per­curso de in­tenso prazer por uma ex­po­sição que rompe as fron­teiras de ser uma re­tros­pec­tiva para se impor como um ma­ni­festo a favor da pin­tura, tal como a obra de Mo­zart é um per­ma­nente ma­ni­festo a favor da mú­sica.

Seja nas pai­sa­gens das terras, ma­rí­timas e ur­banas, nas nar­ra­tivas tanto de mi­to­lo­gias re­cri­adas como in­ven­tadas para nos in­tro­duzir em re­fle­xões fi­lo­só­ficas sobre os laços pro­fundos das re­la­ções hu­manas e os seus re­la­ci­o­na­mentos com os uni­versos cir­cun­dantes re­cor­rendo à se­xu­a­li­dade, aos afectos, aos trân­sitos das idades, na muito ex­tensa ga­leria de re­tratos de es­cri­tores, pin­tores, fi­ló­sofos, ac­tores, mú­sicos toda uma plêiade de in­te­lec­tuais que com ele con­viveu ma­te­rial e ima­te­ri­al­mente, no in­ti­mismo com que re­trata al­guns su­cessos da sua bi­o­grafia fa­mi­liar, o que de facto res­salta e deve ser su­bli­nhado é o amor pela pin­tura posta em prá­tica por mãos que co­nhecem em pro­fun­di­dade os se­gredos da arte de pintar, in­ti­ma­mente li­gadas, di­ri­gidas e ori­en­tadas por uma in­te­li­gência e uma cul­tura in­vul­gares.

O que nesta ex­po­sição se torna evi­dente é o pa­ra­digma da arte, das artes aqui re­pre­sen­tadas pela pin­tura, em re­a­va­liar as re­la­ções entre as ins­ti­tui­ções, as obras e o pú­blico. Das obras de arte re­cu­pe­rarem a sua função crí­tica so­cial e ide­o­ló­gica que, no con­texto cul­tural con­tem­po­râneo, foi ra­su­rada no agora fa­moso «seja lá o que for», cor­po­ri­zado por ar­te­factos da mais va­riada es­pécie de valor mais que dis­cu­tível, para usar uma for­mu­lação sim­pá­tica e per­mis­siva, que só são va­lo­rados num am­bi­ente mar­cado pela ali­e­nação pro­du­zida pela dis­so­ci­ação entre o valor mo­ne­tário atri­buído a esses ar­te­factos e as suas con­di­ções ma­te­riais e so­ciais de pro­dução e por o es­pí­rito crí­tico ter sido eli­mi­nado em favor de bulas de pro­pa­ganda que mo­vi­mentam a bolsa do mer­cado dos ob­jectos de luxo em que esses su­postos ob­jectos de arte se ins­crevem.

É uma ex­po­sição de uma obra que com­ple­menta todo um tra­balho de cons­tante pes­quisa que João Abel Manta desde muito jovem ini­ciou nas vá­rias áreas do de­sign, da ar­qui­tec­tura e da pin­tura, sempre a equa­ci­onar a ne­ces­si­dade de rein­vestir nas artes, su­bli­nhando e apro­fun­dando a sua au­to­nomia re­la­tiva e o seu con­tri­buto in­ter­ventor na so­ci­e­dade, sub­traindo-as das con­ta­mi­na­ções dos de­sertos da arte pela arte.

Esta re­tros­pec­tiva da obra pic­tó­rica de João Abel Manta é uma grande pe­drada nesse charco da arte con­tem­po­rânea,1 de­mons­trando que à arte nada deste mundo é es­tranho pelo que além de o in­ter­pretar o in­venta.

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1 Por arte con­tem­po­rânea aceite-se a de­fi­nição pro­posta por Nathalie Hei­nich, em Le Pa­ra­digme de l’Art Con­tem­po­rain, NRT, Édi­tions Gal­li­mard, 2014

 



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