Novilíngua

Anabela Fino

Quando Orwell pu­blicou o seu fa­moso 1984, em me­ados do sé­culo pas­sado, o fu­turo som­brio ima­gi­nado pelo autor bri­tâ­nico serviu de arma psi­co­ló­gica na Guerra Fria do Oci­dente ca­pi­ta­lista contra o Leste a dar os pri­meiros passos na cons­trução do so­ci­a­lismo. A re­a­li­dade en­car­regou-se de de­mons­trar que o Big Brother, o pen­sa­mento único, o 2+2=5 (na ver­tente ac­tual das fake news), eram afinal apa­nágio da dita ci­vi­li­zação oci­dental e hoje, quase 75 anos de­pois, o livro ganha nova ac­tu­a­li­dade, com a In­gla­terra, que ironia, na van­guarda da edi­fi­cação de um Mi­nis­tério da Ver­dade que mo­di­fica obras para as pôr con­forme com a men­ta­li­dade vi­gente do «po­li­ti­ca­mente cor­recto».

Na ber­linda estão as obras de Roald Dahl, cé­lebre es­critor bri­tâ­nico autor de li­vros in­fantis tão po­pu­lares como Charlie e a Fá­brica de Cho­co­late ou Ma­tilde, que a edi­tora Puffin Books de­cidiu mo­di­ficar para as ex­purgar da «lin­guagem ofen­siva». Ba­se­ando-se em cri­té­rios es­ta­be­le­cidos sabe-se lá por quem, deixa de haver gordos, pe­quenos ho­mens ou ho­mens nuvem, e passa a haver brutos,pe­quenas pes­soas ou pes­soas nuvem. Até a re­fe­rência ao uso de pe­rucas é vi­sado: apon­tadas em As Bruxas como ser­vindo para es­conder a ca­reca, na nova edição acres­centa-se nova ex­pli­cação: «Há muitas ra­zões pelas quais uma mu­lher pode usar uma pe­ruca e cer­ta­mente que não há nada de er­rado nisso.» É quase hi­la­ri­ante.

A mesma sorte es­pera a obra de Ian Fle­ming, autor do 007, que vai ser re­vista para re­mover re­fe­rên­cias con­si­de­radas ra­cistas ou ofen­sivas.

A ini­ci­a­tiva faz lem­brar outra, mais an­tiga, de um pro­cu­rador do Mi­nis­tério Pú­blico Fe­deral bra­si­leiro que há mais de uma dé­cada in­tentou uma acção contra o Di­ci­o­nário Hou­aiss da Língua Por­tu­guesa. E porquê? Porque nas acep­ções para a pa­lavra «ci­gano», o di­ci­o­nário, cum­prindo a sua função, além das de­fi­ni­ções cor­rentes, re­fere as de sen­tido pe­jo­ra­tivo, assim as iden­ti­fi­cando, tais como «tra­pa­ceiro» e «ve­lhaco». O pro­cu­rador, adepto da bor­racha, con­si­de­rava isto ofen­sivo, pre­con­cei­tuoso e ra­cista.

É a no­vi­língua ima­gi­nada por Orwell, des­ti­nada a adul­terar re­gistos tidos por ina­pro­pri­ados para dar a im­pressão de que nunca exis­tiram. É a cons­trução de­li­be­rada de bu­racos da me­mória, o re­es­crever da his­tória ao sabor dos di­tames do pre­sente. É a im­po­sição de uma «nor­ma­li­dade» bem mais grave do que a cen­sura, fo­men­tando o «du­pli­pensar» de Orwell, que faz com que se aceite duas crenças con­tra­di­tó­rias ao mesmo tempo, sem ter noção de que se trata de uma con­tra­dição. Glo­ri­fica-se a ver­dade men­tindo de­li­be­ra­da­mente, do Iraque à Síria, da Pa­les­tina ao Afe­ga­nistão, do Ko­sovo à Líbia, do Vi­et­name a Cuba.

Como no mundo dis­tó­pico de Orwell, Guerra é Paz; Li­ber­dade é Es­cra­vidão; Ig­no­rância é Força. Ben­vindo às fo­gueiras do sé­culo XXI.

 



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