Rearrumação de forças no mundo: o espectro de uma nova ordem que o imperialismo não quer ver nascer

Luís Carapinha

O in­te­resse na adesão ao BRICS in­ten­si­ficou-se com a es­ca­lada da guerra na Ucrânia

A guerra na Ucrânia não in­ter­rompeu, antes es­pi­caçou e está a pre­ci­pitar, o re­ar­ranjo de forças e da ge­o­grafia eco­nó­mica e (geo)po­lí­tica do mundo que muitos iden­ti­ficam como a ten­dência ine­xo­rável de emer­gência de um «mundo mul­ti­polar», num tempo em que se as­siste à rá­pida na­tu­ra­li­zação do con­ceito de «Sul Global». Isto apesar da ele­vada tur­bu­lência e in­cer­teza que, a múl­ti­plos ní­veis, marca o ac­tual quadro in­ter­na­ci­onal e, em par­ti­cular, das som­bras e ne­vo­eiro que per­ma­necem em torno do con­flito na Ucrânia, na es­sência uma «guerra por pro­cu­ração», em pe­ri­gosa es­ca­lada e di­ri­mida de forma cada vez mais di­recta, entre os EUA, à ca­beça do cha­mado «Oci­dente alar­gado», e a Fe­de­ração Russa.

O pro­cesso em an­da­mento de re­ar­ru­mação de forças e mu­dança tec­tó­nica mun­dial traduz-se no cres­cente pro­ta­go­nismo das po­tên­cias (países) emer­gentes e na for­mação ao longo das úl­timas duas dé­cadas de novas or­ga­ni­za­ções mul­ti­la­te­rais com pro­jecção in­ter­na­ci­onal, como o BRICSi, a Or­ga­ni­zação de Co­o­pe­ração de Xangai (OCX)ii, a Co­mu­ni­dade de Es­tados La­tino-Ame­ri­canos e Ca­ri­be­nhos (CELAC)iii e a União Eco­nó­mica Eu­ro­a­siá­tica (UEEA)iv, cuja ini­ci­a­tiva es­capa ao crivo de Washington e da teia de or­ga­ni­za­ções sob al­çada do im­pe­ri­a­lismo. Este é, sem dú­vida, um com­plexo pro­cesso em con­fi­gu­ração, com ele­mentos con­tra­di­tó­rios, par­tindo do seio da ac­tual ordem pre­va­le­cente. É in­dis­so­ciável do apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e das suas con­tra­di­ções fun­da­men­tais e re­sulta da pró­pria di­nâ­mica de es­tag­nação e crise, mar­cando a tra­jec­tória de de­clínio re­la­tivo da he­ge­monia dos EUA e das po­tên­cias ca­pi­ta­listas que formam o G7.

É o re­flexo à es­cala global da ten­dência de des­lo­cação da pro­dução e do poder eco­nó­mico para o campo das po­tên­cias emer­gentes e para a Ásia em es­pe­cial e, neste con­texto, a as­censão da China na eco­nomia e po­lí­tica mun­diais de­sem­penha um papel cen­tral. Ao mesmo tempo, os in­gre­di­entes da re­ar­ru­mação em curso, a emer­gência da mul­ti­po­ra­li­dade, ou, para ou­tros,  da mul­ti­la­te­ra­li­dade, dos novos ac­tores e es­paços de co­o­pe­ração de âm­bito trans­na­ci­onal e global não só es­coram uma re­vi­go­rada ne­ces­si­dade de de­fesa do quadro das so­be­ra­nias na­ci­o­nais, pe­rante a de­riva ar­bi­trária do im­pe­ri­a­lismo e o diktat das po­lí­ticas do de­ca­dente, mas ainda do­mi­nante, pa­ra­digma do Con­senso de Washington, como não podem deixar de ecoar as as­pi­ra­ções de eman­ci­pação dos povos face à ordem in­ter­na­ci­onal pre­va­le­cente, in­justa e iníqua.

 

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O BRICS sim­bo­liza, por ex­ce­lência, o ca­rácter e a ur­gência deste pro­cesso de mu­dança na pre­sente fase (ca­bendo aqui também as suas fra­gi­li­dades e con­tra­di­ções in­ternas). A jovem or­ga­ni­zação – re­a­lizou a pri­meira ci­meira de chefes de Es­tado em 2009, ainda como BRIC, e no ano se­guinte in­te­grou a África do Sul –, tem uma ver­da­deira vo­cação mun­dial, agru­pando as po­tên­cias «emer­gentes» de quatro con­ti­nentes.

O grupo re­pre­senta hoje mais de 40% da po­pu­lação e perto de 25% do PIB mun­diais. Em termos de pa­ri­dade de poder de compra (PPC), o seu PIB, so­mando 31,5% do pro­duto mun­dial, já su­perou o do G7, cuja quota caiu para 30%. Tudo in­dica que esta di­fe­rença se am­plie nos pró­ximos anos, ten­dência que sairá re­for­çada com a con­cre­ti­zação da am­pli­ação do BRICS em dis­cussão, par­tindo do for­mato in­tro­du­zido do «BRICS Plus».

Neste âm­bito, 40 es­tados já ma­ni­fes­taram in­te­resse em aderir ao BRICS e mais de 20 for­ma­li­zaram o pe­dido de adesão, in­cluindo a Arábia Sau­dita, Ar­gélia, Ar­gen­tina, Egipto, Etiópia, Irão e In­do­nésia. Países de di­fe­rentes con­ti­nentes, sis­temas po­lí­ticos e ní­veis de de­sen­vol­vi­mento e que in­te­gram ou­tras or­ga­ni­za­ções inter-go­ver­na­men­tais «re­gi­o­nais», cujo pro­ta­go­nismo tem também ga­nhado ter­reno (ASEAN, CELAC, União Afri­cana, OCX, etc.).

No seio do BRICS, foi cons­ti­tuído em 2015 o Novo Banco de De­sen­vol­vi­mento (NBD) com sede em Xangai, cuja pre­si­dência ro­ta­tiva é pre­sen­te­mente as­su­mida por Dilma Rous­seff. Além dos cinco mem­bros fun­da­dores, o nú­mero de só­cios do NBD alargou-se com a en­trada do Ban­gla­desh, Egipto, Emi­rados Árabes Unidos e Uru­guai. Ou­tros países estão na calha.

 

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É um facto que o in­te­resse na adesão ao BRICS se in­ten­si­ficou com a es­ca­lada de con­fron­tação do im­pe­ri­a­lismo, tão ex­pressa na guerra na Ucrânia e a de­gra­dação qua­li­ta­tiva da si­tu­ação in­ter­na­ci­onal, num quadro que pre­nuncia uma nova re­cessão eco­nó­mica. O alarme geral foi lan­çado pela es­piral de san­ções contra a Rússia im­postas por Washington e se­guidas, ba­si­ca­mente, pela UE, G7 e de­mais países do cha­mado «Oci­dente alar­gado» (do se­questro de 300 mil mi­lhões de dó­lares das re­servas de di­visas e ouro da Rússia na Eu­ropa e nos EUA, cerca de me­tade do total das re­servas russas, à ex­clusão do sis­tema de pa­ga­mentos SWIFT de grande parte do sis­tema ban­cário russo, pas­sando pelo «boi­cote» ao gás e pe­tróleo russos e a des­truição dos ga­so­dutos Nord Stream – que, não menos que a Rússia, afecta a Ale­manha e a UE).

O sen­ti­mento de in­cer­teza e in­se­gu­rança eco­nó­mica alas­trou no Sul Global, en­vol­vendo, muito para lá do rol em cres­cendo de es­tados san­ci­o­nados, um con­junto di­ver­si­fi­cado de países, in­cluindo po­tên­cias emer­gentes e in­ter­mé­dias, di­vi­dindo e ame­a­çando sub­verter afi­ni­dades e ali­nha­mentos po­lí­ticos. Nin­guém quer ser atin­gido pelos mor­teiros da dou­trina re­vi­si­o­nista do «mundo ba­seado em re­gras» com centro de de­cisão na Casa Branca, nem pelo «fogo amigo» das san­ções de al­cance ex­tra­ter­ri­to­rial. Para não re­ferir as ac­ções de puro ter­ro­rismo, a in­ge­rência aberta e ameaça de «re­vo­lu­ções co­lo­ridas»…

É neste con­texto, em pano de fundo da lenta e in­certa re­cu­pe­ração mun­dial da «re­cessão pan­dé­mica», quando as eco­no­mias ainda não se re­fi­zeram dos efeitos pro­fundos da crise de 2007-2008, que se tornou per­cep­tível o efeito bo­o­me­rang sobre as ca­deias de pro­dução e valor glo­bais – e as pró­prias eco­no­mias cen­trais do ca­pi­ta­lismo – da guerra eco­nó­mica e tec­no­ló­gica im­posta pelos EUA à China e das san­ções dra­co­ni­anas vi­sando a Rússia, e se as­siste à cor­rida ao BRICS.

A par do re­forço do co­mércio intra-BRICS, dá-se um novo salto nos acordos com vista à uti­li­zação das mo­edas pró­prias, so­bre­tudo no co­mércio in­ter­na­ci­onal, tor­ne­ando o dólar. Grande parte do co­mércio entre a Rússia e a China já se re­a­liza em yuans e ru­blos; Pe­quim ne­go­ceia com a Arábia Sau­dita o pa­ga­mento em yuans de parte das im­por­ta­ções de pe­tróleo do país do golfo, jun­ta­mente com a Rússia, o seu maior for­ne­cedor de crude; a Índia já paga em yuans parte do pe­tróleo que compra à Rússia e acaba de acordar com os Emi­rados Árabes Unidos o uso das mo­edas na­ci­o­nais no co­mércio bi­la­teral; a Ar­gen­tina, re­cor­dista mun­dial da dí­vida ao FMI, passou a pagar em yuans as im­por­ta­ções da China e uti­lizou a moeda chi­nesa na úl­tima amor­ti­zação ao FMI.

Na Amé­rica do Sul, a par dos es­forços para re­er­guer a UNASUR ou uma or­ga­ni­zação aná­loga (e lembre-se que com Bol­so­naro o Brasil aban­donou a UNASUR e a CELAC, mas não o BRICS), volta a falar-se da cri­ação de uma moeda comum. Em Abril, em Xangai, na sede do NBD, Lula foi la­pidar: «toda noite me per­gunto por que todos os países estão obri­gados a fazer o seu co­mércio las­treado no dólar»v. É apenas uma amostra de uma re­a­li­dade alar­mante para Washington e que re­pre­senta um novo pa­tamar na erosão da po­sição do­mi­nante do dólar e do es­ta­tuto do pe­tro­dólar, sig­ni­fi­cando, em pers­pec­tiva, um risco exis­ten­cial para a pre­pon­de­rância dos EUA nas fi­nanças e eco­nomia mun­diais.

 

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Em Pe­quim, o dis­curso ofi­cial sa­li­enta que o mundo ac­tual passa por trans­for­ma­ções não vistas nos úl­timos 100 anos. Isto é, desde o marco da Re­vo­lução de Ou­tubro na Rússia. A China é o grande pivot da re­ar­ru­mação de forças no mundo e das mu­danças tec­tó­nicas em curso. Não teria che­gado aqui sem a grande re­vo­lução de 1949 e a de­fesa da ori­en­tação so­ci­a­lista, por muito si­nuoso que seja o ca­minho. Nunca na his­tória, por­ven­tura, um país co­nheceu trans­for­ma­ções de ta­manha di­mensão num lapso tem­poral tão com­pri­mido, como a China con­tem­po­rânea.

A dra­má­tica as­censão eco­nó­mica do país com uma po­pu­lação de 1400 mi­lhões (só a Índia está também neste es­calão) está a mudar o re­levo da eco­nomia mun­dial. Se em 2000 o PIB da China su­perou os 10 bi­liões de yuans, em 2022 ul­tra­passou os 120 bi­liões (12 vezes mais). A se­gunda eco­nomia mun­dial – na ver­dade, a maior eco­nomia do mundo em PIB PPC – al­berga a mais com­pleta ca­deia in­dus­trial do globo e con­verteu-se numa po­tência tec­no­ló­gica, na van­guarda em vá­rios do­mí­nios. É o prin­cipal par­ceiro co­mer­cial de mais de 100 países, in­cluindo al­gumas das mai­ores eco­no­mias ca­pi­ta­listas (como o Japão, a Ale­manha e a UE no seu todo, o Brasil, a Co­reia do Sul e a Aus­trália).

Fun­dador de or­ga­ni­za­ções dis­tintas como a OCX, BRICS e RCEP (maior «bloco» co­mer­cial do globo), o país go­ver­nado pelo Par­tido Co­mu­nista da China é o im­pul­si­o­nador de grandes pro­jectos de co­o­pe­ração e in­ves­ti­mento in­ter­na­ci­o­nais, no­me­a­da­mente no âm­bito da Nova Rota da Seda, dos Fó­runs China-África e China-CELAC e co­o­pe­ração Sul-Sul. Ini­ci­a­tivas que no seu con­junto lançam as bases da tran­sição para uma nova era de de­sen­vol­vi­mento global mais equi­ta­tivo, em­brião de uma nova ordem eco­nó­mica in­ter­na­ci­onal.

 

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A pa­rada é muita alta. A velha ordem pa­ra­si­tária não se dá por ven­cida. O im­pe­ri­a­lismo usa a co­acção e a guerra para pro­longar uma he­ge­monia con­de­nada. O ob­jec­tivo de sub­verter o de­sen­vol­vi­mento da China e a sua na­tu­reza so­ci­a­lista é claro. A cam­panha hostil do im­pe­ri­a­lismo es­pera tirar par­tido das con­tra­di­ções e de­sa­fios co­lo­cados à China nos planos in­terno e ex­terno.

En­quanto an­seiam que­brar e sub­meter a Rússia, en­ca­rada como san­tuário de re­cursos e elo es­tra­té­gico mais fraco, Washington e o re­banho dis­ci­pli­nado de ali­ados pres­si­onam a China através de uma rede de ali­anças re­gi­o­nais (AUKUS, Quad, etc.), a con­fi­gu­ração de uma es­pécie de NATO asiá­tica, ten­tando di­vidir a ASEAN, e a chan­tagem em torno de Taiwan. Com­pelem e tentam atrair o go­verno de di­reita in­te­grista da Índia para o seu campo, apro­vei­tando os di­fe­rendos e tensão exis­tentes entre Nova Deli e Pe­quim, mas su­bes­timam ar­rai­gados sen­ti­mentos an­ti­co­lo­niais na an­tiga jóia da coroa bri­tâ­nica.

Nesta con­fron­tação sis­té­mica, o tempo não fa­vo­rece o im­pe­ri­a­lismo. Di­fi­cil­mente, a guerra eco­nó­mica e tec­no­ló­gica lo­grará o ob­jec­tivo de travar a di­nâ­mica de de­sen­vol­vi­mento da China. Mais pro­vável é que o mo­vi­mento de «de­sa­co­plagem», o curto-cir­cuitar e seg­men­tação das ca­deias pro­du­tivas in­ter­na­ci­o­nais se acabe por virar contra os seus pro­mo­tores, agrave as de­bi­li­dades e o es­tado de con­vulsão in­terna nos EUA e con­tinue a minar a si­tu­ação eco­nó­mica in­ter­na­ci­onal.

 

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Jo­a­nes­burgo re­cebe, assim, a Ci­meira do BRICS, a 22-24 de Agosto, para dis­cutir os cri­té­rios de alar­ga­mento. Na ac­tual en­cru­zi­lhada, não se ig­noram as di­fe­renças e li­mi­ta­ções no seu seio e o poder das «quintas co­lunas». Há um ca­minho de luta a per­correr para tornar as pre­o­cu­pa­ções eco­nó­micas e in­te­resses con­ver­gentes do Sul Global – e dos povos – em efec­tivas al­ter­na­tivas de co­o­pe­ração. Sem nunca perder de vista, em cada mo­mento con­creto, o ini­migo prin­cipal.

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i Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

ii China, Rússia, Ca­za­quistão, Quir­guistão, Ta­ji­quistão, Uz­be­quistão, Índia, Pa­quistão e Irão. Na re­cente ci­meira, or­ga­ni­zada pela Índia, foi apro­vado o início do pro­cesso de adesão da Bi­e­lor­rússia como membro de pleno di­reito.

iii Con­grega os 33 países da Amé­rica La­tina e Ca­raíbas, o que equi­vale a todos os es­tados in­de­pen­dentes do con­ti­nente ame­ri­cano, à ex­cepção dos EUA e Ca­nadá.

iv Rússia, Ar­ménia, Bi­e­lor­rússia, Ca­za­quistão e Quir­guistão. Cuba é um dos mem­bros ob­ser­va­dores.

v https://​www.es­tadao.com.br/​po­li­tica/​lula-con­testa-na-china-poder-do-dolar-en­tenda-como-a-moeda-ame­ri­cana-se-tornou-re­fe­rencia-global/