Ustica

Jorge Cadima

O embaixador de Portugal na Líbia em 2011 desmentiu os alegados bombardeamentos de Qadafi

Na noite de 27 de Junho de 1980, o vôo 870 da companhia italiana Itavia, ligando Bolonha e Palermo, não chegou ao seu destino. Ao sobrevoar a ilha de Ustica, ao largo da Sicília, uma explosão provocou a morte dos 81 passageiros a bordo do avião. Esta semana, o ex-primeiro-ministro italiano Giuliano Amato, em entrevista ao jornal Repubblica (2.9.23) falou do caso e disse que «a versão mais credível é a de uma responsabilidade da aeronáutica francesa, com a cumplicidade dos americanos e de quem participou na autêntica guerra aérea que se travou nos nossos céus no final desse dia 27 de Junho». Acrescenta o ex-PM italiano: «Queria-se matar [o dirigente líbio] Qadafi, que estava em vôo num Mig da sua aviação, e o plano previa a simulação dum exercício da NATO, com muitos aviões em acção, durante a qual seria disparado um míssil contra o dirigente líbio: os exercícios eram uma encenação que permitiria vender o atentado como se dum acidente involuntário se tratasse. O dirigente líbio escapou porque foi avisado».

Já em 2008 outro ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República italiano, Francesco Cossiga, afirmara em entrevista às emissoras Radio Rai e Sky que os serviços secretos italianos o haviam informado de «terem sido os franceses a disparar um míssil a partir dum avião da Marinha militar. [...] os franceses sabiam que ia passar o avião de Qadafi, que se salvou porque o SISMI [serviços secretos militares italianos] o informou quando tinha acabado de levantar vôo e ele decidiu regressar imediatamente» (corriere.it, 2.9.23).

Se o avião responsável pelo massacre de Ustica era francês ou americano é acessório. O mais importante a reter são outras coisas. Quando em 2011 a NATO desencadeou a sua guerra contra a Líbia, que haveria de culminar na linchagem de Qadafi, uma monumental campanha foi desencadeada para «justificar» essa guerra invocando «bombardeamentos de Qadafi sobre o seu povo», embora esses supostos massacres tenham sido desmentidos pelo Embaixador de Portugal na Líbia, em declarações à Antena 1, e pelo Relatório da Câmara dos Comuns britânica em 2016. Mas altos dirigentes políticos italianos informam-nos que já há 43 anos a NATO tentara assassinar Qadafi. E que para o fazer encenara uma provocação, com exercícios militares no espaço aéreo italiano. Espaço aéreo que não fora encerrado aos vôos civis. Pretendiam mentir, camuflando o assassinato como um «acidente». E dessa tentativa de assassinato resultou a morte de 81 civis italianos. Mas nenhum destes dirigentes italianos pensou que fosse chegada a hora de abandonar a aliança responsável por este crime sórdido. Porque deviam o seu poder ao facto de servirem esses interesses.

É impossível não pensar noutros misteriosos casos de aviões civis derrubados, entre os quais o vôo da Malásia, abatido ao sobrevoar a Ucrânia em Julho de 2014, logo no início da guerra. O contexto é descrito no interessante livro do holandês Kees van der Pijl, «O vôo MH17, a Ucrânia e a nova Guerra Fria» (Manchester University Press 2018).

Talvez o ressurgir destas acusações faça parte de rivalidades entre Itália e França. A guerra da NATO contra a Líbia, muito fomentada pela França, retirou aos italianos os acordos petrolíferos que tinham com a Líbia de Qadafi. Mas são zangas de comadres. Quando se tratar de malhar em quem resiste ao imperialismo, lá estarão unidos.




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