Da ilusão de uma «Internet livre» aos caminhos da cibercensura

Manuel Gouveia

A In­ternet trans­formou-se num po­de­roso ins­tru­mento de mas­si­fi­cação

Há muitos, muitos anos, uma ge­ração foi le­vada a acre­ditar que a In­ternet re­pre­sen­tava o acesso livre e uni­versal de todos os ci­da­dãos à pro­dução, pu­bli­cação e con­sulta de in­for­mação. A quan­ti­dade de dis­pa­rates que então se es­creveu dava uma ex­ce­lente obra có­mica.

Quem aler­tava para a re­a­li­dade ma­te­rial, e para as im­pli­ca­ções dessa re­a­li­dade ma­te­rial, foi ta­xado de «Velho do Res­telo», e an­tevia-se a sua rá­pida des­cre­di­bi­li­zação pela ver­ti­gi­nosa li­ber­dade pro­vo­cada pela In­ternet. Como sempre, a ma­te­ri­a­li­dade impôs-se.

 

Quem pode, pode

O pri­meiro e mais bá­sico me­ca­nismo de con­trolo na In­ternet é exa­ta­mente o mesmo que existe em toda a so­ci­e­dade bur­guesa, mesmo a mais de­mo­crá­tica nas formas: o papel do ca­pital. Todos temos di­reito a ter um jornal diário, mas quantos temos o ca­pital para poder lançar um? Todos os jor­nais vivem da pu­bli­ci­dade, quem pode obrigar uma em­presa a co­locar pu­bli­ci­dade num jornal que ad­voga a so­ci­a­li­zação dos meios de pro­dução? Todos temos o di­reito a pos­suir um canal de cabo, mas quantos têm o ca­pital para o poder pro­mover e fi­nan­ciar até que, even­tu­al­mente, atinja um fun­ci­o­na­mento sus­ten­tável?

Da mesma forma, hos­pedar uma rede so­cial im­plica mi­lhares de mi­lhões de dó­lares em ser­vi­dores, uma lar­gura de banda tor­ren­cial e a con­tra­tação de de­zenas de mi­lhares de pes­soas – não exige apenas «uma boa ideia». Reunir o ca­pital ne­ces­sário é a con­dição sem a qual a dita «boa ideia» nunca sairá das me­ninges do autor. São por isso na­tu­ral­mente norte-ame­ri­canas as mai­ores redes so­ciais do mundo.

 

A nor­ma­li­zação

A se­gunda forma de con­trolo é ela também ma­te­rial e re­sulta da pri­meira. Esse pro­blema já existia nas ve­lhas bi­bli­o­tecas e foi agora am­pliado um mi­lhão de vezes: chego à bi­bli­o­teca, como es­colho o livro que vou ler? Ou já levo um livro na ca­beça, ou in­dico um tema e aguardo que me for­neçam uma lista, ou di­rijo-me ao balcão das no­vi­dades, ou ponho-me a cir­cular pela bi­bli­o­teca até algum livro me chamar a atenção.

Há sempre um nível de in­ter­me­di­ação. Algo co­locou o livro na minha ca­beça, algum cri­tério ela­borou a lista, al­guém es­co­lheu os li­vros em des­taque. Nas ac­tuais pá­ginas de con­sultas, esse papel é feito pelo in­dis­pen­sável al­go­ritmo, pois cada busca produz mi­lhões de pos­si­bi­li­dades de con­sulta. Um al­go­ritmo que pri­meiro pro­move quem lhe paga, e de­pois as pá­ginas mais vistas ou mais pon­tu­adas, que tendem a ser aquelas cujo co­nhe­ci­mento está mais mas­si­fi­cado.

E que para ace­lerar o pro­cesso me di­rec­ciona para con­teúdos que «sabe» serem do meu agrado, no que produz um novo tipo de iso­la­mento in­te­lec­tual. A ten­dência para a mas­si­fi­cação de uma in­for­mação nor­ma­li­zada é ga­ran­tida quase de uma forma ma­te­má­tica, ao mesmo tempo que ali­menta pe­quenos ni­chos de mer­cado.

Um efeito si­milar so­frem as pá­ginas como a Wi­ki­pédia. De­sen­vol­vida de forma auto-re­gu­lada, onde há po­lé­mica, an­ta­go­nismo in­sa­nável, ela re­flecte sempre a opi­nião pre­vi­a­mente mas­si­fi­cada e tende a eli­minar a opi­nião mi­no­ri­tária. Nem po­deria ser de outra forma. Mas não só existem factos falsos, cujo co­nhe­ci­mento está mas­si­fi­cado, como a pers­pec­tiva com que se abordam os factos é muitas vezes mais im­por­tante que os pró­prios factos. Na Wi­ki­pédia é a visão do­mi­nante que se nor­ma­liza.

 

Au­mentar o con­trolo

Che­gados aqui, temos já uma In­ternet que no plano das massas – o de­ci­sivo para a ca­pa­ci­dade de ma­nu­tenção de um sis­tema de do­mi­nação – está já pro­fun­da­mente con­tro­lada, ga­ran­tindo que os con­teúdos ace­didos pela mai­oria são os pro­du­zidos pelas cen­trais de co­mu­ni­cação ao ser­viço das classes do­mi­nantes.

Mas há ainda um es­paço de li­ber­dade real. Onde uma di­fe­rente pers­pec­tiva do mundo pode ser e é apre­sen­tada. De uma forma não mas­si­fi­cada, mas aces­sível, na te­oria, por todos. É aqui que agora os po­deres po­lí­ticos estão a in­tervir para co­locar – de forma mais clara – me­ca­nismos de cen­sura.

O pri­meiro deles é o acabar com a cha­mada neu­tra­li­dade da rede. Ou seja, per­mitir que os dis­tri­bui­dores de dados atri­buam a al­guns con­teúdos pre­fe­rência de cir­cu­lação, seja por ra­zões eco­nó­micas (quem paga cir­cula, quem não paga cir­cula mais de­vagar) ou ou­tras (ca­ta­lo­gando os for­ne­ce­dores de in­for­mação por algum cri­tério). Até agora, a neu­tra­li­dade da rede tem sido de­fen­dida dos que tentam acabar com ela, mas já há formas de con­tornar a coisa, por exemplo através de pa­cotes de te­le­co­mu­ni­ca­ções que ofe­recem gra­tui­ta­mente apenas o acesso às redes so­ciais.

O se­gundo é es­ta­be­lecer me­ca­nismos man­da­tó­rios e co­mu­ni­tá­rios de com­bate ao con­teúdo de­cla­rado ilegal e às «fake news», à «de­sin­for­mação» para usar o termo do Di­gital Ser­vices Acti , já apro­vado na União Eu­ro­peia em Ou­tubro de 2022 e que se en­contra em im­ple­men­tação fa­seada até 2024. Cri­ando re­gu­la­dores in­de­pen­dentes, «si­na­li­za­dores de con­fi­ança», co­or­de­na­dores na­ci­o­nais, todos cre­dí­veis pe­rante a opi­nião do­mi­nada, e es­ta­be­le­cendo o con­trolo sobre os con­tro­la­dores de acesso, tudo com o ob­jec­tivo as­su­mido de impor a todos os ope­ra­dores o afas­ta­mento da opi­nião cen­su­rável, e de o fazer de forma cen­tra­li­zada para as grandes em­presas mul­ti­na­ci­o­nais.

Aqui já fa­lamos aber­ta­mente de uma cen­sura extra-ju­di­cial (o re­curso aos tri­bu­nais é ad­mi­tido a pos­te­riori), apesar da mesma se dis­farçar de com­bate aos «con­teúdos no­civos», ao dis­curso de ódio e à de­sin­for­mação. Com a agra­vante de ser a Co­missão Eu­ro­peia quem vai cen­surar o Fa­ce­book ou o TikTok em Por­tugal (se estes não se auto-cen­su­rarem no sen­tido de­se­jado pela CE).

Basta olhar para a guerra que hoje se trava na Ucrânia, e ver como são ba­nidas todas as in­for­ma­ções con­trá­rias ao dis­curso pró-NATO, para se ter uma ideia dos efeitos destes me­ca­nismos: am­pli­ficar a opi­nião nor­ma­li­zada, en­tre­gando o poder de fazer a norma às classes do­mi­nantes e seus in­te­resses.

 

Con­cluindo

A si­tu­ação ac­tual é pre­o­cu­pante. A In­ternet de­mons­trou ser um va­lioso e im­pres­cin­dível me­ca­nismo de acesso ao co­nhe­ci­mento e à in­for­mação e si­mul­ta­ne­a­mente trans­formou-se num mons­truoso ins­tru­mento de mas­si­fi­cação da pers­pec­tiva da classe do­mi­nante, que, não sa­tis­feita, pro­cura de­sen­volver novos me­ca­nismos de cen­sura da opi­nião que lhe é no­civa.

Mas essa sempre foi a re­a­li­dade em todas as so­ci­e­dades. Da re­sis­tência a essas ten­ta­tivas, e de uma re­a­li­dade ma­te­rial que exige pro­fundas trans­for­ma­ções, nas­ceram todas as re­vo­lu­ções, apesar de toda a cen­sura.

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i O Re­gu­la­mento (UE) 2022/​2065, apro­vado quase em si­mul­tâneo com o seu par­ceiro «Di­gital Market Act» (Re­gu­la­mento (UE) 2022/​1925). O Di­gital Ser­vices Act foi apro­vado no Par­la­mento Eu­ropeu com 539 votos a favor e 54 contra, en­quanto o Di­gital Mar­kets Act foi com 588 a favor e 11 votes contra. Dos de­pu­tados por­tu­gueses, só os do PCP vo­taram contra, tendo o BE se abs­tido. E já agora, a forma «ame­ri­ca­ni­zada» que a UE passou a adoptar para se re­ferir às «leis fe­de­rais» (o «Act») também não é ino­cente.