Contra todas as evidências, a dignidade

João Manso Pinheiro

O com­bate de Mário Pádua em An­gola travou-se ao nível da cons­ci­ência

A ex­tensa obra de Mário Mou­tinho de Pádua es­pelha a hu­mil­dade, de­ter­mi­nação e hu­ma­nismo de um re­vo­lu­ci­o­nário que, ví­tima de tor­turas e tes­te­munha dos crimes da «en­gre­nagem» co­lo­ni­a­lista, nunca ab­dicou das suas con­vic­ções.

Nos longos meses em que acom­pa­nhou uma com­pa­nhia no Norte de An­gola, em 1961, não foi só a vi­o­lência gra­tuita da acção do exér­cito por­tu­guês que feriu a hu­ma­ni­dade do jovem mé­dico Mário Mou­tinho de Pádua. As ore­lhas cor­tadas, pen­du­radas ao pes­coço ou guar­dadas em formol, tro­féus de uma guerra co­barde; as ca­beças de jo­vens afri­canos des­feitas à co­ro­nhada ou es­pe­tadas em paus; a re­sig­nação nos olhos dos con­de­nados à tor­tura e à morte… eram, afinal, apenas a face vi­sível deste con­flito.

Ao longo das pá­ginas que es­creveu, clan­des­ti­na­mente, du­rante a sua pas­sagem pela guerra co­lo­nial (Guerra em An­gola. Diário de Um Mé­dico em Cam­panha, uma mi­li­tante com­pi­lação dos crimes que tes­te­mu­nhou e de que tomou co­nhe­ci­mento) é no­tória a an­gústia do re­vo­lu­ci­o­nário face à cres­cente in­di­fe­rença dos sol­dados com quem pri­vava di­a­ri­a­mente – jo­vens po­bres, anal­fa­betos e ex­plo­rados, já es­ma­gados pela «en­gre­nagem» do fas­cismo.

«A ro­tina au­to­ma­tiza as re­ac­ções». Criava há­bitos. Nor­ma­li­zava. A bru­ta­li­dade era ins­ti­tu­ci­onal, co­man­dada por che­fias sem es­crú­pulos, cor­ruptas, e in­fla­mada pelo am­bi­ente so­cial fe­chado da com­pa­nhia. Cada rapaz sentia a ne­ces­si­dade de exibir a sua força pe­rante os com­pa­nheiros, de exaltar feitos ima­gi­ná­rios, in­ventar ce­ná­rios cada vez mais san­gui­ná­rios. So­nhavam e trans­pi­ravam uma vi­o­lência que, ainda que nada na­tural, lhes era ne­ces­sária para en­frentar o medo que os en­volvia.

«Só des­mas­ca­rando as mo­ti­va­ções do ra­cismo», es­creveu Mário Pádua, era pos­sível re­verter este me­ca­nismo de ódio que lhes tol­dava as mentes e jus­ti­fi­cava toda a bar­bárie. No seu pro­cesso de cons­ci­en­ci­a­li­zação da tropa, o ra­cismo surge como prin­cipal ad­ver­sário. O ódio ra­cial, pa­tro­ci­nado pelo fas­cismo, im­pedia os sol­dados de com­pre­ender o que es­tava bem à sua vista: pouco os di­fe­ren­ciava, po­bres ex­plo­rados em Por­tugal, do negro hu­mi­lhado pelo co­lo­ni­a­lismo. Ambos es­tavam apenas a um passo da ser­vidão.

Sem dis­parar um tiro, o com­bate de Mário Pádua em An­gola travou-se ao nível da cons­ci­ência. A de­serção, em Ou­tubro de 1961, acom­pa­nhada pelo cabo Al­berto Pinto, também ele mi­li­tante do PCP, não foi si­nó­nimo de de­sis­tência ou co­bardia. Pelo con­trário. Tratou-se de um exemplo de co­ragem para toda a sua com­pa­nhia e, por ex­tensão, para todos os sol­dados mo­bi­li­zados para uma guerra que não sen­tiam sua: não os po­diam obrigar a com­pac­tuar com o in­to­le­rável.

 

«A vin­gança (...) não conduz à re­vo­lução»

No Congo, onde con­tava re­fu­giar-se, é preso e tor­tu­rado pelo re­gime que, meses antes, havia de­posto e as­sas­si­nado o líder an­ti­co­lo­nial Pa­trice Lu­mumba. Con­de­nado à morte, é res­ga­tado pela in­ter­venção do MPLA. Os pró­ximos anos, até ao 25 de Abril, foram vi­vidos em per­ma­nente agi­tação: livre, en­tregue, fi­nal­mente, à «sin­ce­ri­dade», já «sem mor­daça», cumpre o de­sejo de «exercer me­di­cina para ajudar este povo que foi mar­ti­ri­zado por es­tran­geiros desde o sé­culo XV», pri­meiro na Ar­gélia, na Guiné, de­pois.

Mário Pádua, des­creve o es­critor an­go­lano Pe­pe­tela no pre­fácio do livro No Per­curso de Guerras Co­lo­niais 1961-1969, «não in­siste em queixas contra os maus-tratos e as in­jus­tiças so­fridas, não só por parte dos con­go­leses mas também dos an­go­lanos, mi­li­tantes ou re­fu­gi­ados. Ele com­pre­ende a razão de muita des­con­fi­ança, pois co­nhecia como o co­lo­ni­a­lismo (por­tu­guês, belga, francês ou in­glês) ra­chava a hu­ma­ni­dade em partes com res­sen­ti­mentos quase im­pos­sí­veis de ul­tra­passar».

Nas pá­ginas do seu diário, es­critas há mais de 62 anos, Mário Mou­tinho de Pádua ex­primia o seu maior re­ceio: «anima-me uma von­tade de­ses­pe­rada de im­pedir que (...) o con­tacto diário com os as­sas­sinos me trans­forme. Pre­ciso lutar para que isso não su­ceda, para que nunca me aco­mode ou me cale».

Nem o fas­cismo, o ra­cismo, a tor­tura e o ódio o fi­zeram es­quecer de quem era: um homem hu­mano no mundo. Mi­li­tante do PCP desde 1959, de­di­cado co­mu­nista até ao mo­mento da sua morte, a 22 de Se­tembro de 2023, Mário Pádua dá corpo à fi­gura bre­ch­tiana de «im­pres­cín­divel», con­tra­pondo a so­li­da­ri­e­dade aos hor­rores de um mundo que apo­drecia.




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