A República em Os Reinegros, de Alves Redol

Domingos Lobo

Proi­bido pela Cen­sura, Os Rei­ne­gros, de Alves Redol, só foi pu­bli­cado após a morte do autor

«Se­nhores e se­nhoras: o se­gredo de Alves Redol re­sume-se nesta frase: amou ver­da­dei­ra­mente o povo.»

José Gomes Fer­reira, in Re­vo­lução Ne­ces­sária

 

A aná­lise mais vasta da so­ci­e­dade que a Re­pú­blica veio in­tro­duzir, os seus des­vios, as de­si­lu­sões dos tra­ba­lha­dores, que nela viam a pos­si­bi­li­dade de me­lhorar as suas vidas, as con­sequên­cias trá­gicas da Pri­meira Guerra, a as­censão ao poder de uma bur­guesia de mer­ce­eiros e in­dus­triais de ris­cado, será bri­lhan­te­mente re­tra­tada no ro­mance Os Rei­ne­gros, o seu ro­mance mal­dito, es­crito em 1945 e proi­bido pela Cen­sura (Redol foi o único autor por­tu­guês a ter de sub­meter os seus textos a «exame prévio»), só pu­bli­cado em 1972, três anos após a morte do autor e agora re­e­di­tado, em 3.ª edição, pela Ca­minho.

Os Rei­ne­gros – a acção de­corre entre 1907 e 1918 – fala-nos do per­curso evo­lu­tivo, da to­mada de cons­ci­ência de classe, de Al­fredo Rei­negro, a partir do dia em que, vindo da pro­víncia para Lisboa, co­meça a tra­ba­lhar como moço na mer­ce­aria do sr. Al­meida, mo­nár­quico em­pe­der­nido, que en­tendia serem os seus em­pre­gados uma es­pécie menor, que ele podia hu­mi­lhar como bem lhe aprou­vesse, con­si­de­rando até ul­tra­jante que ti­vessem di­reito a folga aos do­mingos de­pois do al­moço. Mas Rei­negro não irá aquecer lugar. Por ser anal­fa­beto sabe es­tarem-lhe ve­dadas ou­tras ta­refas para além de trans­por­tador de sacos no ar­mazém do Al­meida. Junta-se de manta e pu­ca­rinho com Júlia, criada-de-servir, torna-se ser­vente de pe­dreiro, passa a ir aos co­mí­cios re­pu­bli­canos, acre­dita nas pro­messas de me­lhor vida e tra­balho para os da sua igualha, dado que a Mo­nar­quia não pre­cisa do povo para coisa ne­nhuma, como dizia fu­rioso o sr. Al­meida.

Al­fredo Rei­negro acre­dita na Re­pú­blica, nesse sonho li­ber­tário de­po­sita a es­pe­rança em dias me­lhores. «É por isso que sou re­pu­bli­cano», afir­mará com or­gulho. O sonho, con­si­de­rava Al­fredo, de ver na sua terra um re­gime que de­cla­rava ser de Li­ber­dade, Igual­dade, Fra­ter­ni­dade, pa­la­vras justas que, se postas em prá­tica, só po­de­riam ser boas para o Povo. Mas cedo se de­si­lu­dirá da Re­pú­blica sa­bendo, no en­tanto, que era pre­ciso mudá-la, re­tirar de lá os car­tolas que dela se apos­saram, tor­nando-a muito se­me­lhante à Mo­nar­quia ven­cida: «dizia-se da re­pú­blica o que se dis­sera da mo­nar­quia. – Mu­daram a ban­deira e os ho­mens têm outra cara, mas a malta é a mesma».

Rei­negro acre­di­tava que essa re­vo­lução bur­guesa não podia ser essa opor­tu­ni­dade per­dida para o povo miúdo, sabia que, para mudar o rumo das coisas era pre­ciso ter delas cons­ci­ência, mesmo com a guerra, com ra­ci­o­na­mento, com os fi­lhos e a mu­lher em casa a pas­sarem mal, sabia ser pos­sível, se o povo lu­tasse, mudar essa re­a­li­dade: «O povo não quer criar di­fi­cul­dades à re­pú­blica, mas o Go­verno também não pode criar en­traves à marcha do mo­vi­mento ope­rário». Al­fredo, agora loiça ou seja, des­car­re­gador de carvão e sacos de ce­real no porto de Lisboa, ten­tará mo­bi­lizar – e aqui Redol dá-nos a visão ope­rária do cei­feiro re­belde, de Gai­béus -, os seus com­pa­nheiros de in­for­túnio para a luta, es­cla­recê-los sobre a sua con­dição e a força que unidos te­riam para que a ex­plo­ração aca­basse. Nas ruas, face à es­cassez de bens, o povo, o pé des­calço, vem para a rua e já não dá vivas à Re­pú­blica, grita apenas Viva o Pro­le­ta­riado.

A 22 de Ja­neiro de 1918, os mo­nár­quicos re­voltam-se e tentam o der­rube da Re­pú­blica, mas cedo os re­pu­bli­canos, mesmo os des­con­tentes como Al­fredo Rei­negro, se or­ga­nizam e lhes fazem frente, con­ven­cidos que essa será mais uma opor­tu­ni­dade para a ver­da­deira re­vo­lução dos tra­ba­lha­dores. Mor­rerá, cra­vado de balas, na su­bida para Mon­santo. Nas ruas da ci­dade volta a ouvir-se Viva a Re­pú­blica.

Os Rei­ne­gros des­creve como foram as re­la­ções de amor-ódio-de­si­lusão-es­pe­rança entre o pro­le­ta­riado e a bur­guesia que co­man­dava os des­tinos da Re­pú­blica. As massas tra­ba­lha­doras dei­xaram de rever nela, logo nos pri­meiros anos e, so­bre­tudo, no pós-guerra, a bon­dade das suas con­signas. Terá sido esse não acre­ditar, que abriria em 1926 es­paço para a con­quista do poder pelos fas­cistas de Sa­lazar.

Os Rei­ne­gros é o mais pro­fé­tico e po­li­ti­ca­mente em­pe­nhado ro­mance de Alves Redol, logo na forma como ele vai cons­truindo a per­so­nagem cen­tral de Al­fredo Rei­negro e a sua evo­lução po­lí­tica e a cons­ci­ência de classe que esse co­nhe­ci­mento da re­a­li­dade en­volve, o mundo ig­nóbil que o ca­pi­ta­lismo, mesmo este mes­quinho e trau­li­teiro do co­meço do sé­culo, es­tava a cons­truir sob um Go­verno que se dizia do povo. Viva o pro­le­ta­riado! Foi o cul­minar dessa to­mada de cons­ci­ência. Não ad­mira, por­tanto, que a Cen­sura proi­bisse este no­tável ro­mance, o ro­mance mal­dito de um dos nomes ci­meiros da nossa li­te­ra­tura.




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