Entrevista a Edgar Silva, responsável pela Organização da Região Autónoma da Madeira do PCP e deputado à Assembleia Legislativa Regional

«Fizemos a nossa campanha a partir de cada uma das lutas realizadas»

Em en­tre­vista ao Avante!, Edgar Silva fala do cres­ci­mento da CDU nas re­centes elei­ções para a As­sem­bleia Le­gis­la­tiva Re­gi­onal, da forma como se re­sistiu a uma po­de­rosa ofen­siva me­diá­tica, da gra­vi­dade que hoje as­sumem na re­gião os pro­blemas da ha­bi­tação e das de­si­gual­dades.

A CDU subiu cerca de 50% na sua vo­tação re­la­ti­va­mente a 2019. Cresceu nos 10 con­ce­lhos da re­gião e em 50 das 54 fre­gue­sias

Avante!: Na de­cla­ração que pro­fe­riste na noite elei­toral pe­diste des­culpa por de­si­ludir os que pre­viam o de­sa­pa­re­ci­mento da CDU e re­fe­riste-te a uma po­de­rosa cam­panha que o dava como certo. Que meios foram uti­li­zados nesta cam­panha?

Edgar Silva: Desde logo as son­da­gens. Até di­zíamos que «os ou­tros elegem nas son­da­gens e nós ha­ve­remos de eleger no dia das elei­ções». E assim foi.

Nos dias que an­te­ce­deram as elei­ções, os ór­gãos de co­mu­ni­cação so­cial só nos per­gun­tavam uma coisa: como re­a­gi­ríamos à perda da re­pre­sen­tação par­la­mentar. Era a única questão, era quase ob­ses­sivo. Só apa­re­cíamos para co­mentar o nosso pró­prio de­sa­pa­re­ci­mento, por mais que ten­tás­semos puxar para tanta outra coisa im­por­tante que havia para dizer.

Mas ve­ri­ficou-se também um com­pleto si­len­ci­a­mento da in­ter­venção da CDU e o em­po­la­mento de um con­junto de can­di­da­turas ar­ti­fi­ciais, sem ne­nhuma ex­pressão na re­gião, mas que ti­veram um grande des­taque na co­mu­ni­cação so­cial.

E como re­a­giram pe­rante o re­sul­tado con­creto?

Na manhã das elei­ções, quando fui votar, es­tavam lá todos os ór­gãos de co­mu­ni­cação so­cial, num cír­culo à minha volta: «Então, trinta e tal anos de­pois a CDU vai perder re­pre­sen­tação par­la­mentar pela pri­meira vez. Como vão re­agir? Como vai ser o fu­turo?». Era só isto…

Mas ao fim da tarde, quanto co­me­çaram a surgir os re­sul­tados e se per­cebeu que a CDU não só não teria uma quebra como, pelo con­trário, es­taria a crescer, nas de­cla­ra­ções pro­fe­ridas no Centro de Tra­balho já não apa­receu quase nin­guém, à ex­cepção da­queles que em prin­cípio não po­diam faltar: o Diário de No­tí­cias da Ma­deira, o Jornal da Ma­deira e a RTP Ma­deira.

É claro para nós que, se de facto não ti­vés­semos ele­gido nin­guém, lá es­ta­riam todos. Esta des­pro­porção entre os que es­tavam da parte da manhã e da parte da tarde é sin­to­má­tica.

Como se ex­plica então este re­sul­tado, num quadro tão hostil e pe­rante meios tão des­pro­por­ci­o­nados?

Com­pa­ra­ti­va­mente às elei­ções de há quatro anos, su­bimos em cerca de 50% na nossa vo­tação. Su­bimos nos 10 con­ce­lhos da re­gião e em 50 das 54 fre­gue­sias.

Penso que foram im­por­tantes as op­ções que to­mámos, que se vi­eram a re­velar acer­tadas. Pen­sámos toda a cam­panha con­tando apenas com os meios que temos, que são in­su­fi­ci­entes, mas são aqueles com que po­demos contar. E pen­sámos assim: com isto que temos, o que po­demos fazer?

E que op­ções foram essas?

De­ci­dimos contar com os lu­gares onde em­pre­en­demos lutas. Nas em­presas, nos lo­cais de tra­balho, nas lo­ca­li­dades onde tra­vámos a luta com os tra­ba­lha­dores e as po­pu­la­ções. Foi a partir de cada uma das lutas re­a­li­zadas que fi­zemos a nossa cam­panha. As pes­soas já nos co­nhecem, es­ti­veram con­nosco em vá­rias oca­siões e re­co­nhecem que nos mo­mentos em que pre­ci­saram de apoio foi com o PCP e com a CDU que pu­deram contar.

Não foi pre­ciso ex­plicar muito, era chegar e dizer: «se nós somos im­por­tantes para a luta, também temos de ser im­por­tantes na hora de votar, para que essa luta tenha me­lhores con­di­ções para pro­gredir.» Ficou de­mons­trado que valeu a pena lutar e que a luta é um ele­mento fun­da­mental para a trans­for­mação das cons­ci­ên­cias e para ga­nhar as pes­soas para se apro­xi­marem da CDU. É um pro­cesso muito in­te­res­sante.

Podes dar exem­plos de al­gumas dessas lutas?

O Se­cre­tário-Geral es­teve, logo a se­guir às elei­ções, num desses lu­gares, nas Zonas Altas do Fun­chal, que é o ca­minho do moinho. Trava-se aí, desde os anos 90, uma luta pela me­lhoria dos acessos. Antes che­gava-se lá por uma ve­reda, a pé, e a pri­meira fase da luta foi pela cons­trução de um acesso ro­do­viário.

E há ou­tras, mais re­centes, nas Zonas Altas, pela le­ga­li­zação das casas, pelo di­reito ao trans­porte e ao sa­ne­a­mento. Os es­gotos ali ainda correm a céu aberto. Ainda agora, du­rante a cam­panha, houve um abaixo-as­si­nado com mais de 800 as­si­na­turas pela cons­trução de um ca­minho para que as pes­soas possam chegar a casa sem ser pelo meio de uma le­vada com tudo às costas. Fi­zemos uma ini­ci­a­tiva com uma gar­rafa de gás…

Para se per­ceber o peso?

sim, per­correr com uma gar­rafa de gás às costas o per­curso entre o trans­porte ro­do­viário e as casas. Foi muito im­por­tante, pois já tinha ha­vido uma ini­ci­a­tiva assim há uns anos, em que as pes­soas le­varam uma gar­rafa de gás ao pre­si­dente da Câ­mara Mu­ni­cipal do Fun­chal, que era na al­tura o Mi­guel Al­bu­querque, sim­bo­li­zando o peso de muitas vidas, de muitas ad­ver­si­dades. Lá em cima, nas Zonas Altas, ficou como uma re­fe­rência sim­bó­lica, que evo­cámos.

O re­sul­tado deve-se, acima de tudo, à pre­sença cons­tante junto das pes­soas, é isso?

Acho que destas elei­ções sai uma lição para a nossa or­ga­ni­zação: temos de in­ten­si­ficar ainda mais este tra­balho junto das po­pu­la­ções e dos tra­ba­lha­dores. Neste caso des­taca-se o CARAM [centro de abate de gado da Ma­deira], a GESBA [que gere o sector da ba­nana], a Câ­mara Mu­ni­cipal do Fun­chal e a em­presa de cer­vejas da Ma­deira. Na mai­oria das lutas tra­vadas a ini­ci­a­tiva do Par­tido es­teve na linha da frente e hoje os tra­ba­lha­dores sabem com quem podem contar para con­quistar di­reitos.

Que podem es­perar os ma­dei­renses do novo go­verno PSD/​CDS, agora com o apoio do PAN?

Por um lado, PSD e CDS saíram destas elei­ções com con­di­ções re­for­çadas para pros­se­guir a mesma po­lí­tica e in­ten­si­ficar pro­cessos de ocu­pação in­dis­cri­mi­nada do li­toral e de agressão am­bi­ental que vi­nham já sendo es­bo­çados, mas que agora, com o PAN na la­pela, têm como que uma co­ber­tura para os levar por di­ante.

Mas não saíram re­for­çados, pois per­deram votos e eleitos…

Têm a mai­oria no Par­la­mento, com o PAN, mas saíram fra­gi­li­zados por dois as­pectos. Pri­meiro, não al­can­çaram o seu ob­jec­tivo elei­toral de, juntos, con­se­guirem a mai­oria ab­so­luta com que es­tavam a contar e que todas as son­da­gens in­di­cavam ser pos­sível.

Se­gundo, a con­versa do Mi­guel Al­bu­querque, que se de­mi­tiria se não con­se­guisse essa mai­oria… Não cum­priu, ar­ranjou jus­ti­fi­ca­ções e des­cre­di­bi­lizou-se. É uma mai­oria de­sa­cre­di­tada. Como diz o povo, é lapa agar­rada à rocha, é o poder pelo poder apenas para ga­rantir be­ne­fí­cios a de­ter­mi­nados grupos.

Muitas fa­mí­lias são es­po­li­adas das suas ha­bi­ta­ções

A CDU tem es­tado na rua pra­ti­ca­mente todos os dias, desde as elei­ções, co­lo­cando o foco no pro­blema da ha­bi­tação. Qual a di­mensão deste pro­blema na Re­gião?

O agra­va­mento do pro­blema da ha­bi­tação, que também se ve­ri­ficou na Ma­deira, é vi­sível em três re­a­li­dades. Desde logo no facto de ser na Re­gião Au­tó­noma da Ma­deira que há o maior nú­mero de fa­mí­lias em listas de es­pera para ha­bi­tação de ar­ren­da­mento so­cial. Neste mo­mento são cerca de 6000 fa­mí­lias, só no Fun­chal são 4000…

O valor das rendas na Ma­deira, e so­bre­tudo no Fun­chal, está ao nível de Lisboa, é ele­va­dís­simo. Em boa parte dos lu­gares do Fun­chal, uma renda é su­pe­rior ao valor do sa­lário da mai­oria dos tra­ba­lha­dores da re­gião.

E a se­gunda, qual é?

O grande nú­mero de fa­mí­lias con­fron­tadas com ac­ções de des­pejo. Existe uma grande pressão por parte dos se­nho­rios, que dizem que pre­cisam da casa, porque as­piram a um ar­ren­da­mento mais ele­vado. Muitas fa­mí­lias estão a ser es­po­li­adas das suas ha­bi­ta­ções e, ao não en­con­trarem so­lu­ções com­pa­tí­veis com os seus ren­di­mentos, ou vão para a casa de fa­mi­li­ares ou ficam a viver dentro de vi­a­turas. É uma si­tu­ação de­ses­pe­rante.

E há todo aquele pro­blema que tem a ver com as fa­mí­lias que con­traíram em­prés­timos ban­cá­rios e se vêem con­fron­tadas com os au­mentos das pres­ta­ções.

Listas de es­pera para ha­bi­tação so­cial, rendas e pres­ta­ções in­com­por­tá­veis, des­pejos… E mais?

Há outro pro­blema, as fa­mí­lias que, não en­con­trando res­posta por parte do Es­tado para o pro­blema ha­bi­ta­ci­onal, par­tiram para a au­to­cons­trução, para a ha­bi­tação de gé­nese ilegal, não li­cen­ciada. A luta, aí, é pela ha­bi­ta­bi­li­dade digna, pelo di­reito a uma casa com con­di­ções para que o di­reito à ha­bi­tação acon­teça, para que não seja apenas o di­reito a ter um tecto. Esta é, em grande me­dida, a luta das po­pu­la­ções das Zonas Altas, onde as pes­soas têm um lugar para dormir, mas não ha­bitam, é um dor­mi­tório. Sem par­ques, sem es­gotos… No Fun­chal, Câ­mara de Lobos e Santa Cruz há mi­lhares de pes­soas a viver em torno das ci­dades.

As de­si­gual­dades são mais ex­tre­madas na Re­gião

Outra questão que a CDU co­locou na cam­panha elei­toral foi a das in­jus­tiças e de­si­gual­dades so­ciais. Que nível atinge a in­jus­tiça na Re­gião? De que tipo de de­si­gual­dade fa­lamos? 

Os ele­vados ní­veis de de­si­gual­dade so­cial, de in­justa dis­tri­buição da ri­queza, são um pro­blema na­ci­onal, mas têm na Ma­deira uma ex­pressão mais agra­vada. É, entre as re­giões de Por­tugal, aquela em que os ní­veis de de­si­gual­dade são mais ele­vados: a nível na­ci­onal, os 5% mais ricos detêm no con­junto 42% da ri­queza criada e na Ma­deira os 5% mais ricos detêm 58% da ri­queza, ou seja, o pro­blema está muito mais ex­tre­mado.

Neste mo­mento, cerca de 32% da po­pu­lação da Re­gião Au­tó­noma da Ma­deira en­contra-se em risco de po­breza, apesar dos in­di­ca­dores de ri­queza não pa­rarem de crescer, so­bre­tudo graças à eco­nomia do tu­rismo. Mas esse cres­ci­mento não tem cor­res­pon­dência ao nível dos sa­lá­rios e da dis­tri­buição da ri­queza criada.

Como se ex­plica isso?

Os sa­lá­rios no sector do tu­rismo con­ti­nuam a ser muito baixos e a pre­ca­ri­e­dade muito ele­vada, com mão-de-obra ex­tre­ma­mente pre­cária. Grande parte dos tra­ba­lha­dores da ho­te­laria estão à margem da con­tra­tação co­lec­tiva. Al­guns são con­tra­tados ao dia e até à hora. Esse cres­ci­mento cor­res­ponde, assim, a um agu­dizar das formas de ex­plo­ração e das de­si­gual­dades.

Pro­cu­rámos nesta cam­panha fazer das de­si­gual­dades uma questão ci­meira da agenda po­lí­tica. Nin­guém quer falar disto e quando o faz é apenas pela via da po­breza, la­men­tando, usando pa­la­vras pi­e­dosas e ten­tando que não se es­ta­be­leça uma re­lação entre a ex­plo­ração, as de­si­gual­dades e a po­breza.

Que pri­o­ri­dades nor­te­arão no ime­diato a in­ter­venção do PCP e da CDU na Ma­deira?

Há um con­junto muito va­riado de ques­tões sobre os quais temos de in­tervir. Para além da ha­bi­tação e dos sa­lá­rios (de­sig­na­da­mente o au­mento do acrés­cimo ao Sa­lário Mí­nimo Na­ci­onal), há as ques­tões da saúde, que são muito sen­tidas, mas também as da ha­bi­tação. Na As­sem­bleia Re­gi­onal vamos bater-nos pelo com­bate à cor­rupção e pela re­visão do re­gime de in­com­pa­ti­bi­li­dades: na Ma­deira os de­pu­tados têm um re­gime de ex­cepção que não é ad­mi­tido nem no con­ti­nente nem nos Açores e é ne­ces­sário revê-lo. De­fen­demos também uma Lei de Fi­nanças Re­gi­o­nais que per­mita o di­reito ao de­sen­vol­vi­mento.




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