Schweik na II Guerra Mundial, de Bertolt Brecht

Domingos Lobo

Brecht re­cu­pera Sch­veik, o anti-herói do livro de Ja­roslav Hasek e co­loca-o na Se­gunda Guerra Mun­dial

Quando em 1964 me ins­crevi no Con­ser­va­tório Na­ci­onal, da Rua dos Ca­e­tanos, para es­tudar Te­atro, le­vava na ba­gagem A Pre­pa­ração do Actor, de Kons­tantin Sta­nis­lavski, em tra­dução de Artur Ramos, e os Es­tudos Sobre Te­atro, de um tal Ber­tolt Brecht, em tra­dução de Fiama Hasse Pais Brandão.

Eu e um grupo de amigos an­dá­vamos fas­ci­nados com estes dois li­vros e ou­tros que o Re­dondo Jú­nior nos re­ve­lara. Era o tempo das des­co­bertas em país ve­dado a obras que ten­tavam alargar ho­ri­zontes, so­bre­tudo no es­treito e vi­giado uni­verso te­a­tral da época. Tão em­pol­gados an­dá­vamos que le­vámos o Brecht e o Sta­nis­lavski (deste úl­timo só o pro­fessor Gino Sa­vi­otti nos havia fa­lado), para as aulas de Arte de Re­pre­sentar, mi­nis­tradas pelo actor Álvaro Be­namor. Fi­cámos, a partir desse dia, disse-nos uma voz grave e fu­riosa, im­pe­didos de trazer para as aulas obras sub­ver­sivas.

Ti­vé­ramos, no início da dé­cada de 1960, a re­ve­lação de Ber­tolt Brecht – o autor pros­crito pelo fas­cismo –, através da Com­pa­nhia de Maria Della Costa que montou no Ca­pi­tólio, pe­rante a dis­tração boçal da Cen­sura, A Boa Alma de Tsé-Chuan – «dis­tracção» pron­ta­mente cor­ri­gida pelos atentos vi­gi­lantes do Diário da Manhã (ou da Manha, como era co­nhe­cido na gíria), que valeu à Com­pa­nhia a ex­pulsão do País, pela PIDE.

Apesar do cerco, o te­atro épico de Brecht, tra­du­zido por Fiama Hasse Pais Brandão, Ilse Losa e Luiz Fran­cisco Re­bello, aca­baria por ter in­fluência con­cep­tual nas obras te­a­trais de al­guns au­tores li­gados ao ne­or­re­a­lismo, ou pró­ximos, como Alves Redol, José Car­doso Pires, Ber­nardo San­ta­reno, Luís de Sttau Mon­teiro, Luzia Maria Mar­tins, Romeu Cor­reia e Mi­guel Franco.

So­bre­viver ao pe­sa­delo

Schweik na II Guerra Mun­dial, de Ber­tolt Brecht, agora es­treada pela CTA (Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada), com en­ce­nação de Nuno Ca­ri­nhas, é uma das obras do autor alemão menos re­pre­sen­tadas – só es­treou em 1957, na Po­lónia. Schweik, o anti-herói que Brecht irá re­cu­perar do livro de Ja­roslav Hasek, O Va­lente Sol­dado Schweik, obra que já havia adap­tado em jovem, com Pis­cator, numa versão te­a­tral es­treada em Berlim em 1928, está agora na II Guerra, mas não perdeu a verve e o sen­tido de dri­blar, por uma con­fusa re­tó­rica, as si­tu­a­ções crí­ticas em que as cir­cuns­tân­cias o en­volvem.

Em­bora esta peça deixe muitas ques­tões em aberto, apesar de Brecht a ter re­vi­si­tado vá­rias vezes, não deixa de conter o dis­curso di­a­léc­tico, a lu­cidez e o sen­tido crí­tico e de­nun­ci­ador do na­zismo, face ao de­su­mano que as guerras são, que en­con­tramos em ou­tras obras suas.

Trata-se de um texto solto, pol­vi­lhado por um sadio tom pi­ca­resco, no qual o humor cor­ro­sivo do autor de Mãe Co­ragem per­mite uma dis­tensão entre o drama do povo miúdo, vi­vendo as ca­rên­cias do ra­ci­o­na­mento e da fome num país ocu­pado pela bar­bárie, a Che­cos­lo­vá­quia, ao caso, e a ne­ces­si­dade de con­ti­nuar a viver e a re­sistir, com as armas da si­mu­lação, até ao fim do pe­sa­delo.

A mú­sica de Hanns Eisler acres­centa, como acon­tece em vá­rias peças de Brecht, no­me­a­da­mente as do seu pe­ríodo ame­ri­cano, a com­po­nente lí­rica na acção, con­tri­buindo para o pro­cesso de dis­tan­ci­ação pró­prio do seu te­atro épico. As 15 can­ções es­critas para esta peça, in­vulgar quan­ti­dade se com­pa­rado com ou­tras peças do autor, à ex­cepção de Ópera dos Três Vin­téns, faz supor que tanto Brecht como Hanns Eisler te­riam a in­tenção de a ver pro­du­zida nos palcos da Bro­adway.

Mais um grande es­pec­tá­culo da CTA, em eficaz en­ce­nação de Nuno Ca­ri­nhas, que uti­lizou também o ci­nema para su­bli­nhar al­gumas pas­sa­gens do texto, no­me­a­da­mente aquelas em que um Hi­tler pa­té­tico in­tervém (a cena final entre Hi­tler e Schweik é bri­lhante no sim­bó­lico que a en­volve), ter­mi­nando em apo­teose com a Canção Mol­dava.

Na guerra muita coisa cres­cerá/​Cres­cerão com cer­teza/​As pro­pri­e­dades dos pro­pri­e­tá­rios/​E a mi­séria dos sem pro­pri­e­dades1. E a in­dús­tria ar­ma­men­tista, acres­cen­tamos nós, que em 2022 ar­re­cadou dos vá­rios países do globo 2,240 bi­liões2 de dó­lares.

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1 Poema de Ber­tolt Brecht

2 Ao con­trário do que su­cede com o an­gli­cismo «bi­lion», que se re­fere a mi­lhar de mi­lhão, em por­tu­guês a pa­lavra «bi­lião» re­fere-se a uma ordem de gran­deza muito su­pe­rior: um bi­lião é um mi­lhão de mi­lhão.




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