- Nº 2609 (2023/11/30)

Casa na Duna, de Carlos de Oliveira

Argumentos

Casa na Duna, de Carlos de Oliveira, publicado em 1943, há 80 anos, portanto, ano em que saiu Fogo na Noite Escura, de Fernando Namora, e Alves Redol viu ser impedido de publicação, pela Censura, o seu romance Os Reinegros. Este romance maior do autor de Finisterra, foi objecto, ao longo das várias edições, de algumas revisões pontuais que constituíam prática, quanto a mim salutar, de Oliveira face à revisitação das suas obras, aquando de uma nova edição.1

Casa na Duna é uma metáfora inteligente e fecunda, de ponderosos e reflexivos sinais, sobre o capitalismo primitivo e rural, o latifúndio dos Paulos e as circunstâncias da sua decadência, substituído por outro mais eficaz e cruel, num mundo em contínua mudança. O capitalismo que se autodevora, como refere Anselm Jappe em A Sociedade Autofágica, que prescinde de humanidade para se impor e explorar sem remorsos os que o servem e produzem riqueza.

O universo romanesco de Carlos de Oliveira, o seu espaço da gândara, das suas raízes afectivas, as quintas construídas em charcos e terrenos arenosos, começa a declinar – esse declínio de um tempo velho e cristalizado em tradições e crenças, que o autor irá transportar, de modo mais claro, para Pequenos Burgueses e, numa abordagem mais intimista, para Uma Abelha na Chuva –, mesmo que nele a miséria e a fome permaneçam quase imutáveis. O que muda, o que conduz ao estertor da casa secular dos Paulos, não será tanto o modo de vida dos seus personagens, a inaptidão de Hilário para viver naquele mundo fechado, «No casarão da quinta falava-se pouco», ou de Mariano Paulo que não consegue assegurar, utilizando métodos ancestrais de trabalhar a terra – «O trabalho da quinta era feito com enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão» –, que permitissem boas colheitas, aumentar salários e competir com outras explorações que se mecanizaram e floresceram.

Mesmo quando Mariano abandona a terra e se decide por outro negócio, que julga poder salvar-lhe a herança recebida dos seus ancestrais, parte sem arrojo, de um modo quase artesanal. A fábrica de telha que constrói irá ser engolida pela concorrência, pelas grandes e mecanizadas fábricas da Pampilhosa, que vendem barato, sobretudo a partir do momento em que a nova estrada de macadame, que une a aldeia de Corrocovo a Corgos, foi inaugurada. A nova estrada irá permitir que as camionetas por ali passem e transportem mais rapidamente as telhas para os lugares da gândara.

A vida é um jogo cruel e Mariano Paulo sabe-o e perdeu a jogada, a última cartada. Agora que o filho, o valdevino Hilário, «foi encontrado com a enxada que o matou enterrada de alto a baixo da cabeça», mais nada lhe resta, a quinta dos Paulos encher-se-á de tojos e silvas, o forno do telhal apagar-se-á sem honra nem glória, a fome caminhará pela aldeia ainda mais fria e maligna nessas terras de mãe pobre/de gente pobre, alguns emigrarão como Luciano Taipa, Guilhermina continuará a abrir a porta do casebre aos homens que a solidão acossa, Lobisomem arrastará a perna gangrenada pelos lameiros, o Dr. Seabra talvez ainda acredite em tempos justos, Firmino tirará o chapéu aos mandantes enquanto Mariano Paulo «Abre a despensa e pega na primeira lata de petróleo». Se perdeu a jogada, a quinta e o poder, que não perca a dignidade. Só o fogo, elemento mítico que tudo purifica, apagará a passagem dos Paulos por esse chão infértil, por essa casa em ruínas, construída de modo precário, como a vida, sobre dunas: que venha a morte depois/fria como a luz dos astros/que nos importa morrer/se não morrermos de rastros?

Carlos de Oliveira serviu-se desta história, diz-nos Mário Dionísio, «para criar uma nova realidade», não já esse capitalismo feudal, aos rés do humano, mas o outro que se anuncia, que já está a nascer sobre as suas ruínas: a barbárie da exploração que tomará proporções gigantescas, da humanidade «supérflua», que Oliveira personifica em Hilário.

Casa na Duna é não apenas uma das obras-primas do neo-realismo, esse movimento literário, cultural e político que foi «tão vasto e revolucionário como o renascimento», como escreveu Dionísio, esta obra define Carlos de Oliveira como o escritor que melhor soube entender e expor na ficção o entrechocar das estruturas sociais.

Carlos de Oliveira era um mestre e como tal deve ser amado e lido. Um poeta sublime, no dizer de Manuel Gusmão.

 

1 Nesta crónica utilizei a 3ª. edição de Casa na Duna, com prefácio-estudo de Mário Dionísio, publicada em 1964, pela Portugália.

 

 

Domingos Lobo