Nos 100 anos de Urbano Tavares Rodrigues

José António Gomes (Membro da direcção do Sector Intelectual do Porto do PCP)



«Na ale­gria de es­tarmos unidos, na di­fícil so­li­da­ri­e­dade do es­forço con­ti­nuado


Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, fi­gura cen­tral da li­te­ra­tura por­tu­guesa con­tem­po­rânea, foi também um co­ra­joso re­sis­tente an­ti­fas­cista e de­di­cado mi­li­tante co­mu­nista

Nas­cido em 6/​12/​1923, em Lisboa, onde morreu em 2013, Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues é uma fi­gura cen­tral da li­te­ra­tura por­tu­guesa con­tem­po­rânea. Mas também uma per­so­na­li­dade mar­cante da vida po­lí­tica, pelo co­ra­joso po­si­ci­o­na­mento an­ti­fas­cista, que cedo as­sumiu, e pela sua con­dição de mi­li­tante co­mu­nista, a partir de 1969. Im­pos­sível aliás re­sumir o que foi a sua com­ba­tiva opo­sição ao fas­cismo, desde o apoio ac­tivo à can­di­da­tura pre­si­den­cial de Del­gado, em 1958, ao afas­ta­mento por mo­tivos po­lí­ticos da Fa­cul­dade de Le­tras da Uni­ver­si­dade de Lisboa, em 59 (rein­te­grado após o 25 de Abril, só então teve pos­si­bi­li­dade de con­cluir o dou­to­ra­mento), e às su­ces­sivas proi­bi­ções de lec­ci­onar no se­cun­dário, pas­sando pela in­te­gração nas listas da CDE às elei­ções le­gis­la­tivas (por Beja), em 1969, pela adesão ao Con­selho Mun­dial da Paz em 70, e ainda pela mi­li­tância em fó­runs in­ter­na­ci­o­nais de es­cri­tores. Foi preso pela PIDE em 1961, em 63 e em 68, su­jeito a tor­turas e, na ter­ceira prisão, for­çado a cum­prir cerca de cinco meses de iso­la­mento total em Ca­xias (onde, em papel hi­gié­nico, es­creveu boa parte dos Contos da So­lidão, 1970). Já de­pois do 25 de Abril, em­pe­nhou-se na luta re­vo­lu­ci­o­nária e nas ba­ta­lhas elei­to­rais do seu par­tido de sempre, bem como nas ta­refas do Sector In­te­lec­tual de Lisboa.

Pro­lí­fico autor de ro­mances, no­velas e contos de cunho mai­o­ri­ta­ri­a­mente re­a­lista (em­bora o fan­tás­tico o tenha igual­mente ca­ti­vado), in­flu­en­ci­ados pelo mar­xismo e pelo exis­ten­ci­a­lismo sar­triano e ca­mu­siano, que te­ma­ti­zavam amiúde a an­gústia exis­ten­cial e a re­lação amo­rosa, numa tensão entre Eros e a morte, evi­den­ci­ando forte afecto a Lisboa e ao Alen­tejo, Ur­bano pu­blicou aquele que é con­si­de­rado um dos grandes ro­mances por­tu­gueses do sé­culo XX: Bas­tardos do Sol (1959), ficção de ce­nário alen­te­jano que põe a nu a in­sus­ten­ta­bi­li­dade so­cial, eco­nó­mica e moral do la­ti­fúndio, mas que ergue também, e dig­ni­fica, o es­ta­tuto da mu­lher nesse ad­verso con­texto, por via da per­so­nagem de Iri­salva. Um texto no qual novos modos de contar e de es­tru­turar a nar­ra­tiva, a par duma prosa es­ti­lis­ti­ca­mente so­fis­ti­cada, re­pas­sada de po­esia e não raro to­cante pelo li­rismo se afirmam assim na ficção por­tu­guesa da se­gunda me­tade do sé­culo XX.

 

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Vi­cis­si­tudes da vida fa­mi­liar levam o es­critor e jor­na­lista (que também o foi) a viver a in­fância e a ado­les­cência em Moura, numa casa de quinta perto do rio Ar­dila, onde cos­tu­mava ba­nhar-se, ce­nário que re­cri­aria em vá­rias das suas fic­ções de ge­o­grafia hu­mana e fí­sica alen­te­jana, como acon­tece em certos contos de A Noite Roxa (1956), em «A morte da ce­gonha», de Casa de Cor­recção (1968) – conto que Sa­ra­mago des­creveu como «ad­mi­rável poema em prosa» –, em Es­tó­rias Alen­te­janas (1977) ou em O Ca­valo da Noite (2006).

No Alen­tejo, jus­ta­mente, des­ponta a sua cons­ci­ência so­cial e po­lí­tica, ante a crua ex­plo­ração dos as­sa­la­ri­ados ru­rais do la­ti­fúndio, a evi­dência do des­res­peito pelos di­reitos de cri­anças e mu­lheres e ainda os ecos da per­se­guição a re­fu­gi­ados re­pu­bli­canos es­pa­nhóis fu­gidos à sanha fran­quista. No Alen­tejo – amiúde o afirmou –, en­con­travam-se o húmus da sua pulsão vital, poé­tica e fic­ci­onal e as raízes da sua opção po­lí­tica pela causa dos de­ser­dados, cam­po­neses e classe ope­rária – e, acres­cente-se, pelas pre­o­cu­pa­ções am­bi­en­tais, te­má­tica aflo­rada em es­pe­cial nos úl­timos li­vros.

1949 é o ano em que casa com a no­tável es­cri­tora Maria Ju­dite de Car­valho, em que co­meça a dar aulas como pro­fessor uni­ver­si­tário em França, e em que se es­treia em livro com uma pe­quena obra de re­por­tagem, San­tiago de Com­pos­tela (qua­dros e su­ges­tões da Ga­liza). Im­porta re­cordar que Ur­bano editou mais de de­zena e meia de li­vros de cró­nicas e vi­a­gens, in­cluindo Vi­agem à União So­vié­tica e Ou­tras Pá­ginas (1973). Inau­gura, de­pois, a obra fic­ci­onal com A Porta dos Li­mites (1952), a que se se­guem mais de quatro de­zenas de li­vros de contos, no­velas e ro­mances, al­guns deles grandes êxitos de pú­blico e de crí­tica, dos quais foram pre­mi­ados, entre ou­tros, Uma Pe­drada no Charco (1958), Fuga Imóvel (1982), A Vaga de Calor (1986), Vi­o­leta e a Noite (1991), De­riva (1993), Nunca Di­remos Quem Sois (2002) e A Es­tação Dou­rada (2004).

Terra Ocu­pada (1.ª ed., 1964) é uma das obras que nos de­volvem uma re­pre­sen­tação do país no início da dé­cada de 60. Das nove nar­ra­tivas que a com­põem, «A ale­gria de viver» é a mais im­buída de es­pí­rito de re­sis­tência ao fas­cismo e às suas forças re­pres­sivas. É, si­mul­ta­ne­a­mente, exal­tação da fra­ter­ni­dade na luta e da «ale­gria de viver» (cf. tí­tulo), e su­gestão de es­pe­rança (também traços de ca­rácter do autor, homem de pro­ver­bial cor­di­a­li­dade e en­cantos vá­rios). Daí que a co­lec­tânea feche com este texto. Ele mostra, por assim dizer, uma saída po­si­tiva para o con­flito vi­vido pela per­so­nagem, em con­fronto com o ca­rácter aber­ta­mente de­cep­tivo do des­fecho, nou­tros contos. Pro­duto dum tempo e da firme opo­sição à di­ta­dura sa­la­za­rista, Terra Ocu­pada – esse «livro de com­bate» como o autor o clas­si­ficou – fi­cará para o fu­turo como viva re­cons­trução fic­ci­onal do in­to­le­rável clima de opressão que se viveu em Por­tugal nos iní­cios de 60.

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As fic­ções de Ur­bano exibem cri­ti­ca­mente con­tra­di­ções duma bur­guesia so­bre­tudo ci­ta­dina, mas também da agrária, nas dé­cadas fi­nais do fas­cismo (50-70) e nas que se se­guiram ao 25 de Abril, além de ex­pri­mirem an­seios de mu­dança so­cial e ma­ni­fes­tarem um lado forte de com­ba­ti­vi­dade e de utopia. Os tra­ba­lha­dores, re­giste-se, marcam pre­sença nas suas fic­ções.

Para o leitor de hoje, certas no­velas e contos de Vi­a­mo­ro­lência (1976) e de As Pombas Ver­me­lhas (1977) pos­suem, entre ou­tras, a grande vir­tude de re­cri­arem, com li­ber­dade, o que foi a pulsão re­vo­lu­ci­o­nária dos anos de 74-76. E, desse ponto de vista, são lei­turas que em­par­ceiram com belas cri­a­ções do pe­ríodo (pós-)re­vo­lu­ci­o­nário, como as cró­nicas e po­emas de José Gomes Fer­reira, certas obras de Car­doso Pires, de Maria Velho da Costa, de Olga Gon­çalves ou ainda a po­esia de uma Sophia e de um Ary dos Santos. De men­ci­onar, a pro­pó­sito, O Dia Último e o Pri­meiro (1999), onde, pelo olhar da per­so­nagem de um an­ti­fas­cista, Ale­xandre, que sofre um des­gosto amo­roso, se re­lata apai­xo­na­da­mente a ma­dru­gada do 25 de Abril e o dia que em Lisboa se se­guiu. Mas como não re­cordar ainda o ro­mance Desta Água Be­berei (1979), tão ou­sado nas suas formas de contar, e que, entre Lisboa e Alen­tejo (também Paris), e através de di­fe­rentes óp­ticas as­so­ci­adas a vozes di­versas, não só de­volve uma viva imagem da Re­vo­lução, mas so­bre­tudo ilustra, do­lo­ro­sa­mente, o que foi o cre­pús­culo da Re­forma Agrária e todo o re­tro­cesso contra-re­vo­lu­ci­o­nário que mer­gu­lhou o país em crise so­cial e eco­nó­mica, em 1976 e nos anos se­guintes – crise que prin­ci­pal­mente se abateu, como sempre, sobre a classe tra­ba­lha­dora.

E um arco talvez se possa traçar até 2005 e ao ro­mance Ao Con­trário das Ondas, que foca con­tra­di­ções ide­o­ló­gicas e vi­ven­ciais duma per­so­nagem que, ou­trora de es­querda e in­te­grando, na idade ma­dura, um go­verno de di­reita, acaba traindo bur­gues­mente os ideais da ju­ven­tude, obra que em si­mul­tâneo en­cena um mal-estar exis­ten­cial e as ten­sões da re­lação amo­rosa entre ho­mens e mu­lheres. Cite-se, con­tudo, a úl­tima frase de Desta Água Be­berei: «É este o baixo-re­levo da Re­vo­lução: na ale­gria de es­tarmos unidos, na di­fícil so­li­da­ri­e­dade do es­forço con­ti­nuado, per­sis­tente, corre o rio pro­fundo da vi­tória.»

Muito ha­veria a dizer (o es­paço não o per­mite) sobre ou­tras fic­ções e a obra en­saís­tica deste autor, sobre a in­dis­so­ci­a­bi­li­dade vida/​es­crita que nele se pa­ten­teia. Acu­mu­lando também umas três de­zenas de li­vros de crí­tica (era es­pe­ci­a­lista em Ma­nuel Tei­xeira Gomes, em Aqui­lino, nos neo-re­a­listas, em Ma­nuel Tiago/Á​lvaro Cu­nhal, em li­te­ra­tura fran­cesa…), a muito pre­miada pro­dução de Ur­bano não é fácil de co­nhecer por in­teiro (foi também poeta, em As Horas de Vidro, 2011, e não só, além de dra­ma­turgo, em As Torres Mi­le­ná­rias, 1971; e viu po­emas seus mu­si­cados por Adriano Cor­reia de Oli­veira e por Luís Cília).

Man­tendo laços ini­ciais com o neo-re­a­lismo, a es­crita fic­ci­onal ganha vida muito pró­pria, pois não ficou imune à fi­lo­sofia exis­ten­ci­a­lista, ao nou­veau roman, ao sur­re­a­lismo. E certa pulsão ex­pe­ri­mental levou mesmo o autor a cul­tivar o fan­tás­tico, a deixar-se se­duzir pelo conto bre­vís­simo (no úl­timo livro pu­bli­cado em vida: A Imensa Boca Dessa An­gústiae Ou­tras His­tó­rias, 2013), a in­vestir até no ro­mance his­tó­rico (exemplo: Os Ca­dernos Se­cretos do Prior do Crato, 2007) e na nar­ra­tiva po­li­cial (O Eterno Efé­mero, de 2005).

Cons­ti­tuem talvez traves-mes­tras da es­crita (e da vida) de Ur­bano, a par da paixão por Lisboa e pelo Alen­tejo, as ques­tões do amor e da morte, do ero­tismo e da sen­sação de ab­surdo que por vezes pesa sobre a exis­tência hu­mana, mas também a pulsão re­vo­lu­ci­o­nária, o sen­tido crí­tico (que toda a vida ali­mentou o seu pen­sa­mento po­lí­tico e es­té­tico), bem como a de­fesa in­tran­si­gente da jus­tiça so­cial e de uma so­ci­e­dade so­ci­a­lista.

 

Cen­te­nário em sessão evo­ca­tiva

Ontem, por ini­ci­a­tiva do PCP, com o apoio da SPA – So­ci­e­dade Por­tu­guesa de Au­tores, re­a­lizou-se em Lisboa, no Au­di­tório Ma­estro Fre­de­rico Freitas, si­tuado na sede da­quela en­ti­dade, uma sessão evo­ca­tiva sobre a vida e obra do es­critor e mi­li­tante co­mu­nista Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues.

Con­tando com as in­ter­ven­ções de Do­mingo Lobo, José Jorge Le­tria, Vítor Vi­çoso e de Paulo Rai­mundo, Se­cre­tário-Geral do PCP, da sessão constou ainda um mo­mento mu­sical com a par­ti­ci­pação da ac­triz Maria João Luís e do cantor Ro­gério Charraz.

Desta ini­ci­a­tiva, in­se­rida no âm­bito das co­me­mo­ra­ções do cen­te­nário de Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, vol­ta­remos a falar com de­sen­vol­vi­mento na pró­xima se­mana.