Impõe-se apurar responsabilidade e acabar com a privatização da ANA

A privatização dos aeroportos foi um escândalo, como comprovou agora o Tribunal de Contas, mas um escândalo maior seria permitir que esse assalto ao País continuasse por mais 40 anos. Para o PCP, a questão que agora se impõe é acabar com a privatização da ANA – Aeroportos de Portugal.

Permitir o assalto por mais 40 anos seria um escândalo ainda maior

No dia 6, sábado, o Partido reagiu, numa nota do Gabinete de Imprensa, à divulgação, na véspera, do relatório da auditoria do Tribunal de Contas sobre a privatização da ANA. O PCP destacou que «Tribunal de Contas expõe crime da privatização da ANA» e «é preciso tirar consequências».

«Se a privatização dos aeroportos foi um escândalo, escândalo maior seria permitir que esse assalto ao País continuasse até 2062, ou seja, por mais 40 anos», pelo que «a questão que agora se impõe é acabar com a privatização».

A gravidade do que foi revelado requer o apuramento de responsabilidades políticas e criminais. Uma vez que o Tribunal de Contas enviou o relatório para o Ministério Público, «é necessário aguardar pelo apuramento das responsabilidades criminais que venha a ser feito».

Quanto às responsabilidades políticas, o PCP irá apresentar, no início da próxima legislatura, uma proposta de constituição de uma comissão parlamentar de inquérito à privatização da ANA.

O Partido tomará também«iniciativas legislativas que permitam a reversão da privatização da ANA e a retoma do controlo público sobre este activo estratégico nacional, que envolve os 10 principais aeroportos civis existentes em Portugal».

O Tribunal de Contas concluiu que «a privatização da ANA não salvaguardou o interesse público», assinalando o Partido que, «mais uma vez, uma auditoria a uma privatização vem comprovar o quão criminosa esta se revelou para o interesse nacional» e «dá razão às denúncias realizadas pelo PCP ao longo de anos».

A par da mais recente Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP, cujos trabalhos foram concluídos em Julho de 2023, o atentado ao interesse nacional tinha já ficado claro nos relatórios das auditoriasdo Tribunal de Contas à privatização da EDP e da REN (2015) e à concessão a privados de 27 sistemas de abastecimento de água (2014).

O relatório divulgado no dia 5, salienta o PCP, «vem comprovar que os sucessivos governos – neste caso, com particulares responsabilidades para o governo PSD/CDS, de Passos Coelho e Paulo Portas, com o aplauso de André Ventura e de outros dirigentes do Chega e da Iniciativa Liberal (que nesse período integravam o PSD e o CDS) – lesaram o interesse nacional, transferindo milhares de milhões de euros públicos para uma multinacional (a VINCI) e para o conjunto de intermediários envolvidos».

Por outro lado, o Tribunal de Contas «vem confirmar ainda que as privatizações são um caso de polícia e um terreno fértil onde floresce a corrupção».

 

Roubo, mentiras e truques

Da leitura do relatório do Tribunal de Contas (publicado no sítio do Tribunal de Contas na Internet e ao qual se pode aceder nesta ligação: bit.ly/TContas-ANA), o PCP realçou alguns aspectos, a comprovar as denúncias e críticas dos comunistas e das organizações representativas dos trabalhadores, a mostrar a dimensão do prejuízo infligido ao Estado e a desmentir argumentos e números que foram esgrimidos, à exaustão, por quem defendeu e impôs a privatização da ANA.

Ilegal

Houve ilegalidade no facto de o processo de privatização ter avançado sem uma avaliação prévia da empresa. E também violaram a lei as alterações significativas do valor da ANA Aeroportos, decididas durante o próprio processo de venda.

Foram detectadas «inconformidades e inconsistências» que «são graves e revelam risco material de falta de fidedignidade de documentação processual que foi determinante para escolha do comprador», afirma-se no relatório.

Observa o PCP que«a ANA pública – por causa das chamadas contas certas – precisava de autorização de dois ministros para contratar um trabalhador». Ocorrer uma auditoria deste tipo, «é revelador do quão avançado vai o processo de captura das instituições públicas pelo interesse dos grupos económicos».

Bom preço...

A auditoria revelou que «o preço da privatização» pago pela VINCI foi de 1 127 milhões de euros, e não os mais de três mil milhões de euros que o governo PSD/CDS propagandeou na altura – e um valor que foi profusamente repetido ao longo dos últimos 12 anos.

O Tribunal confirmou que, nos primeiros 10 anos de exploração da concessão, a VINCI já recebeu o que pagou pela ANA e regista até um lucro de 309 milhões de euros.

Para o «bom preço» oferecido à multinacional francesa, contam ainda dois factos, comprovados na auditoria:

– os dividendos de 2012, com a ANA sob gestão pública, foram oferecidos à VINCI;

–sem qualquer fundamento válido, o governo ofereceu ainda à VINCI um desconto de 71 milhões de euros, sobre o valor já contratado para pagar a compra da ANA.

Entretanto, a partir dos dados e cálculos que o Tribunal de Contas apresentou, estima-se que, até 2062, a ANA Aeroportos poderá embolsar 20 a 30 mil milhões de euros.

Promiscuidade

Ficou evidente a promiscuidade entre os gestores públicos e privados, em todo o processo de privatização, envolvendo também responsáveis pela ANAC e pela NAV.

Toda a administração da ANA foi mudada em Agosto de 2012, um mês antes de arrancar o processo privatizador, a qual deveria ter um papel de relevo na apreciação das propostas e na selecção do comprador. Este «risco material para a protecção cabal dos interesses nacionais» foi depois materializado: consumada a privatização, a VINCI manteve todos os membros da administração da ANA, confirmando o que um seu representante anunciara a 19 de Novembro de 2012. A nomeação de sete outros administradores contrariou a declaração da multinacional, que alegara não dispor de uma equipa para substituir a administração.

O Tribunal assinala uma «evidente desconformidade» entre duas apreciações de propostas da VINCI feitas pela administração da ANA. A 6 de Novembro, na avaliação técnica das propostas não vinculativas, a da VINCI era irrealista e inexequível; a 17 de Dezembro, avaliando as propostas vinculativas, a da VINCI era a mais forte e a mais competitiva. Na auditoria não foi encontrada uma razão para esta alteração de posição.

Ficam ainda registadas, com menção a conflito de interesses, a passagem de um dos membros da administração da ANA, em 2015, por ter sido nomeado para presidente da administração da ANAC (Autoridade Nacional da Aviação Civil), e a ida do presidente da ANA para presidente da NAV (Navegação Aérea de Portugal), no final de 2017.

E ainda o aeroporto

O PCP reafirma, à luz da auditoria, que «só não se constrói o novo aeroporto de Lisboa no Campo de Tiro de Alcochete, como há muito se exigia, porque a multinacional VINCI não quer».

O Tribunal de Contas nota que a construção do novo aeroporto «é indissociável do processo de privatização da ANA», à qual, «já no decurso» desse processo, o governo atribuiu «o direito exclusivo de apresentar uma proposta para a concepção, construção e exploração desse aeroporto». Além de permitir a negociação de diferentes soluções de expansão da capacidade aeroportuária, o contrato «admite que a solução proposta possa provocar a necessidade do reequilíbrio económico e financeiro da concessão, pelo aumento das taxas e/ou do prazo». Ou seja, «o prazo de concessão de 50 anos é prorrogável», é «longo e incerto no seu termo», o que, para o Tribunal, «acarreta riscos acrescidos», já que «uma única entidade privada ficaria encarregue da gestão de todos os principais aeroportos nacionais por período tão extensível e sem termo conhecido à partida».

Não foi assim na UE

A auditoria do Tribunal de Contas denuncia que o País procedeu à privatização total da sua gestora aeroportuária, «enquanto a maioria dos países da União Europeia manteve participação no capital social» de empresas congéneres, assinala o PCP.

Pior para a dívida

Esta foi uma privatização que, tendo sido aceite por PS, PSD e CDS, foi também imposta pela UE e pelas grandes potências que a integram. A desculpa usada, então, para impor ao País essa opção, foi a necessidade de abater a dívida pública.

A auditoria apurou quanto foi de facto essa amortização: 626,5 milhões de euros de redução da dívida pública, naquele momento. O Estado abdicou, então, de 20 a 30 mil milhões de euros de receitas nos 50 anos seguintes. Para o PCP, isto confirma que as privatizações agravam a dívida pública, em vez de a diminuírem.