SMO: soberania vs. interesses supranacionais

Vasco Marques

Tem sido recorrente o surgimento do Serviço Militar Obrigatório (SMO) na ordem do dia. Mas a intensidade com que recentemente surgiu no espaço público não tem precedentes, dando a ideia de um imperativo nacional de discussão sobre o tema.

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Desta feita, o assunto começa por aparecer por via do Chefe de Estado Maior da Armada, que começou por defender a necessidade de «reequacionar o serviço militar obrigatório»i, para dias depois achar que é preciso uma nova resposta mais consensualii, quando em 2022 tinha dito que não era «adepto do SMO»iii. O interesse fundamental na discussão do tema está, no entanto, do lado dos que protagonizaram o fim do SMO e que hoje, guiados por agendas importadas do estrangeiro, procuram a sua reanimação para alcançar objectivos supranacionais ao invés de pesarem os interesses nacionais.

A discussão que foi posta em curso sobre uma eventual reintrodução do SMO parte de uma inaceitável linha de alimentação da guerra. A necessidade premente que se coloca é a de garantia da paz e não a de alimentar a confrontação, seja por que via for.

Discutir o Serviço Militar Obrigatório carece de seriedade, ponderação e coerência como pontos de partida. Aquando da discussão sobre o fim do SMO, em 1999, e respectiva consumação, em 2004, o PCP, alvo então de fortes críticas pela sua posição, assumiu-a sempre de forma clara e alertou para muitos problemas associados à execução de tal medida. Assistiu-se a um «processo pouco rigoroso e quase sempre manipulador em termos da avaliação da Instituição do SMO, complementado por um fluxo de opinião publicada, que acabou por inviabilizar uma reflexão séria e uma discussão política empenhada, a par do indispensável debate nacional que a temática deveria obrigar»iv. Já então o PCP referia que «não se pode dar um salto como este para depois verificar que afinal o sistema não funciona, que não há gente suficiente para as necessidades, que se provocou uma crise grave nas Forças Armadas, deixando a componente militar de defesa poder degradar-se e perder os padrões mínimos que o país lhe exige.”v. Ainda mais recentemente, no XX Congresso do PCP se afirmava: «é curioso registar como alguns hoje aparecem a falar do SMO: nuns casos pela sua silenciosa cumplicidade com as decisões da altura; noutros casos procurando justificar a sua reintrodução com mistificatórios argumentos de combate ao terrorismo.»vi

Muitas das abordagens que têm surgido recentemente partem de pressupostos falaciosos. Alguns dos argumentos usados para a reintrodução do SMO hoje são os mesmos que foram usados para o seu fim, como a maior tecnicidade do armamento. Por outro lado, há quem faça parecer que o regresso do SMO faria desaparecer os graves problemas com que as Forças Armadas (FA) portuguesas se deparam, o que é falso. A inexistência de mecanismos para tornar o serviço militar atractivo e a desresponsabilização de sucessivos governos quanto a esta matéria resultaram num acelerado definhamento do efectivo dos três ramos das FA. Hoje existirão cerca de 21.080 militaresvii, longe dos 30.000viii almejados. Em 2018, a então presidente da JSD considerava o fim do SMO «parte do legado que a JSD tem deixado ao país»ix. Está à vista o legado deixado, não pelas «jotas», mas por PS, PSD e CDS.

O fim do SMO significou a passagem para um modelo de FA assente na profissionalização, «com os tendenciais e perversos desvios para a mercenarização, internacionalização e privatização. Forças Armadas que não estão prioritariamente vocacionadas para a protecção das sociedades de que emanam, mas para actuação além-fronteiras no cumprimento de missões de potências ou instâncias internacionais» (NATO e UE). As palavras de Nuno Severiano Teixeira, então ministro da Defesa Nacional, citadas por Pezarat Correia, comprovam-no: «Passámos de um Exército de base territorial para outro de base operacional. Quer isto dizer que se muda de um Exército que estava fundamentalmente voltado para as missões no território português para outro de missões no exterior.»x

Quanto à eventual operacionalização de um regresso ao SMO, o desinvestimento das infra-estruturas militares é tal que dificilmente haveria hoje capacidade física e financeira para lhe dar resposta, nomeadamente em termos de centros de recrutamento, bem como de unidades militares em quantidade e qualidade para a formação e alojamento.

O imperativo que se coloca para a inversão da degradação a que as Forças Armadas portuguesas têm sido sujeitas é o de valorizar carreiras e salários, proceder à dignificação social e dotar as FA das infraestruturas e equipamentos necessários para o cumprimento da sua missão.

Quanto à linha de raciocínio assente na substituição conceptual do SMO por um «serviço nacional de cidadania»xi, resta saber qual a componente militar que sobra de um serviço com características como as que têm sido avançadas. Vale a pena recuperar as palavras recentes de um ex-CEMGFA: «É uma ideia interessante. Mas a cidadania ensina-se em casa e na escola.»xii A prestação de serviço na área da ordem pública ou da protecção civil, pouco ou nada aparentam ter de ligação com a questão inicial.

O SMO que o PCP sempre defendeu assenta numa lógica inserida nos desígnios constitucionais de Paz e cooperação, de mais-valia para a capacitação do País e garantia de soberania. Um SMO assente na participação popular na Defesa Nacional, que se inscreva num modelo de sociedade com as Forças Armadas ao serviço da defesa da paz, dos interesses nacionais e da vontade popular. Que, entendendo a Defesa Nacional em sentido lato, promova a solidariedade com outros povos e outras regiões quando estão em causa os valores da paz e dos direitos humanos, recuse ingerências noutros Estados soberanos.

 

i Almirante Henrique Gouveia e Melo, Expresso, 29.03.24, p.20

ii Idem, RTP, 3.04.24

iii Idem, TSF, 20.05.22

iv Tenente-General Joaquim Formeiro Monteiro, Revista Militar de Janeiro de 2018

v João Amaral, 24 de Março de 1999, Assembleia da República

vi Rui Fernandes, Defesa Nacional e Forças Armadas, XX Congresso do PCP

vii Rui Miguel Godinho, Diário de Notícias, 30.03.24, p.8

viii Portugal 2020, Ministério da Defesa Nacional, Setembro de 2015

ix Margarida Balseiro Lopes, Diário de Notícias, 19.08.18

x Major-General Pedro Pezarat Correia, «Serviço Militar, Esqueletos no Armário», em O referencial n.º 130 p.164

xi Entrevista ao Major-General João Vieira Borges, Público, 31.03.24

xii Entrevista ao General Luís Valença Pinto, Diário de Notícias, 5.04.24

 



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