As pescas nacionais: contexto, situação actual e a construção do futuro no quadro de um país soberano

João Delgado

É pre­ciso as­so­ciar a a di­na­mi­zação da pesca à cons­trução e re­pa­ração naval, ao co­mércio de pro­xi­mi­dade, à in­dús­tria con­ser­veira

O Par­tido e a de­fesa do sector da pesca
É re­co­nhe­cida a acção do Par­tido na de­fesa do sector da pesca. Uma visão de de­sen­vol­vi­mento que co­loca como fun­da­mental a va­lo­ri­zação dos seus pro­fis­si­o­nais, o re­forço da pro­dução na­ci­onal, as ne­ces­si­dades da po­pu­lação por­tu­guesa no plano ali­mentar – Por­tugal é o maior con­su­midor de pes­cado da União Eu­ro­peia (UE) e o 3.º maior con­su­midor mun­dial –, a re­dução da de­pen­dência ex­terna de pro­dutos da pesca, a ex­plo­ração ra­ci­onal dos re­cursos ha­li­êu­ticos com base num maior e mais apro­fun­dado co­nhe­ci­mento ci­en­tí­fico, com­ple­men­tando-o sempre com o co­nhe­ci­mento em­pí­rico e com a aus­cul­tação às co­mu­ni­dades nos pro­cessos de to­mada de de­cisão.

In­fe­liz­mente, os alertas que o Par­tido foi le­van­tando foram-se ma­te­ri­a­li­zando num brutal ema­gre­ci­mento do sector, na des­va­lo­ri­zação so­cial dos pes­ca­dores, na des­truição da ca­pa­ci­dade pro­du­tiva e na des­ca­rac­te­ri­zação das co­mu­ni­dades pis­ca­tó­rias.

Fonte: INE e PORDATA

Fonte: INE e POR­DATA

A cons­trução do ce­nário do sector que temos
A com­plexa teia que de­ter­mina o sector pis­ca­tório ac­tual só pode ser en­ten­dida se a ten­tarmos con­tex­tu­a­lizar com al­guns factos po­lí­ticos e so­ci­o­e­co­nó­micos que trans­for­maram o mundo e o País. Factos que im­pac­taram e trans­fi­gu­raram as co­mu­ni­dades mais de­pen­dentes da pesca nos úl­timos 40 anos.

A Re­vo­lução de Abril emerge num con­texto em que o sector pis­ca­tório na­ci­onal se con­fronta com uma con­fluência de fac­tores exó­genos e en­dó­genos. O choque pe­tro­lí­fero de 1973 fez dis­parar os custos dos fac­tores de pro­dução para as em­presas na­ci­o­nais da pesca in­dus­trial e do cerco.

A es­tru­tura cor­po­ra­tiva das pescas de­sa­pa­rece e é ne­ces­sário inau­gurar novas ló­gicas de ac­tu­ação, num sector que se ha­bitou a ser de­se­nhado por prá­ticas pro­tec­ci­o­nistas para uns (o ca­pital) e re­pres­sivas para a maior parte (o tra­balho).

Não é de im­por­tância menor a cí­nica re­le­vância que o re­gime fas­cista lhe con­feriu, nas suas es­tra­té­gias de pro­pa­ganda, nas en­ce­na­ções po­lí­tico-re­li­gi­osas que davam início às cam­pa­nhas da pesca do ba­ca­lhau ou na obra so­cial di­rec­ci­o­nada ao sector, vi­sando o seu con­trolo so­cial, po­lí­tico e eco­nó­mico.

As mo­vi­men­ta­ções in­ter­na­ci­o­nais que se ti­nham ini­ciado nos anos 50, na ten­ta­tiva de travar aquilo que era de­sig­nado, ge­ne­ri­ca­mente, por sobre-ex­plo­ração dos re­cursos ha­li­êu­ticos, ga­nhavam novo fô­lego. Re­forçam-se as teses do fim do livre acesso à ex­plo­ração do mar, com a cri­ação das Zonas Eco­nó­micas Ex­clu­sivas (200 mi­lhas a partir da linha de costa) e do Mar Ter­ri­to­rial (12 mi­lhas a partir da linha de costa) para a ju­ris­dição dos Es­tados, que viria a ser uma re­a­li­dade no início dos anos 80.

Este con­texto impõe di­fi­cul­dades de acesso a pes­queiros tra­di­ci­o­nais da frota na­ci­onal, no­me­a­da­mente na costa oci­dental afri­cana e no Atlân­tico Norte. Grande parte das ope­ra­ções de pesca pas­sa­riam a re­a­lizar-se na curta pla­ta­forma con­ti­nental na­ci­onal, para além da­quelas já de­sen­vol­vidas a partir das re­giões au­tó­nomas, onde os bancos de pesca são aflo­ra­mentos muito con­cen­trados, no que con­cerne à pesca de fundo, ou nas águas em redor dos ar­qui­pé­lagos da Ma­deira e Açores, no que res­peita aos grandes pe­lá­gicos e mi­gra­dores.

Os anos 90 são mar­cados pelos im­pactos da im­ple­men­tação da Po­lí­tica Comum das Pescas (PCP) – com uma visão es­sen­ci­al­mente pre­cau­ci­o­nária, e nem sempre ali­cer­çada em dados ci­en­tí­ficos fiá­veis –, pelos de­sa­fios da adesão à Or­ga­ni­zação Comum de Mer­cado e pela forte pro­moção dos abates da frota na­ci­onal.

Nesta ca­mi­nhada, per­deram-se cerca de 27 mil postos de tra­balho di­rectos na pesca, sendo que ac­tu­al­mente re­sistem pouco mais de 14 mil pro­fis­si­o­nais e onde, apenas tendo em conta uma visão em­pí­rica, ar­ris­camos a dizer que cerca de 15% destes tra­ba­lha­dores são pro­ve­ni­entes de países asiá­ticos e dos PALOP. Perdem-se também cerca de 11140 em­bar­ca­ções de pesca, res­tando uma frota com­posta, a 31 de De­zembro de 2023, por 6856, em que, apenas 54,4% es­tavam de­vi­da­mente li­cen­ci­adas para operar.

Só no pri­meiro de­cénio após a adesão à então CEE foram apro­vados 1000 pro­jetos de abate, sendo que dois terços acon­te­ceram nos go­vernos de Ca­vaco Silva, entre 1986 e 1993. No início do novo mi­lénio é o im­pacto da adesão à moeda única, em con­ju­gação com a des­truição da ca­pa­ci­dade pro­du­tiva do sector, que pa­recem dar ex­pressão maior ao dé­fice da ba­lança co­mer­cial de pro­dutos da pesca, que não mais parou de au­mentar, bem como o nú­mero de pro­fis­si­o­nais e em­bar­ca­ções não mais pa­raram de di­mi­nuir.

Si­mul­ta­ne­a­mente, as­siste-se a uma ló­gica de con­cen­tração, tanto no acesso à ex­plo­ração dos re­cursos, como na co­mer­ci­a­li­zação por parte da grande dis­tri­buição.

Em 2023, o ín­dice dos preços ao con­su­midor dos pro­dutos da pesca au­mentou 4,2% e os preços de pri­meira venda em lota des­ceram 4,6%. O preço médio do pes­cado em 2023 fixou-se em 2,47 euros/​kg. Ou seja, num ce­nário de in­flação ge­ne­ra­li­zada, a grande dis­tri­buição ad­quiriu o pes­cado mais ba­rato e vendeu mais caro. Fica evi­dente a na­tu­reza cen­trí­fuga e de­su­mana do ca­pi­ta­lismo mo­no­po­lista.

Défice da balança comercial de produtos de pesca em Portugal após a adesão ao Euro 2002-2023 (milhões de euros). Fonte: INE e PORDATA

Dé­fice da ba­lança co­mer­cial de pro­dutos de pesca em Por­tugal após a adesão ao Euro 2002-2023 (mi­lhões de euros). Fonte: INE e POR­DATA

A pesca que temos e a pesca de que o País pre­cisa
Co­loca-se ao País a ne­ces­si­dade de in­verter o ca­minho tri­lhado. Saídos das elei­ções para o Par­la­mento Eu­ropeu, torna-se im­pe­ra­tivo dar con­ti­nui­dade às exi­gên­cias que o PCP tem co­lo­cado para sal­va­guardar os in­te­resses na­ci­o­nais, de­sig­na­da­mente na re­visão da Po­lí­tica Comum das Pescas que está pre­vista.

Im­porta afirmar que, face a uma visão am­bi­en­tal­mente sus­ten­tável, e a uma visão ener­ge­ti­ca­mente equi­li­brada, Por­tugal tem uma frota de pesca es­sen­ci­al­mente de pe­quena es­cala, uti­li­zando mai­o­ri­ta­ri­a­mente mé­todos ar­te­sa­nais, e de­tida por micro-em­presas de ca­rácter fa­mi­liar.

Num tempo em que tanto se abordam as te­má­ticas da efi­ci­ência ener­gé­tica, nada mais acer­tado do que pugnar pela de­fesa da pesca ar­te­sanal e por ló­gicas de cri­ação de cir­cuitos curtos de co­mer­ci­a­li­zação na es­teira do que está plas­mado no Có­digo In­ter­na­ci­onal de Boas Prá­ticas para uma Pesca Sus­ten­tável, da FAO.

Nos úl­timos dois anos, os re­la­tó­rios das en­ti­dades res­pon­sá­veis pela aná­lise do es­tado dos re­cursos têm ga­ran­tido que não há es­pé­cies sobre-ex­plo­radas no nosso mar. Esta re­cu­pe­ração foi ma­te­ri­a­li­zada à custa de muitos sa­cri­fí­cios dos pes­ca­dores e das em­presas de pesca. Re­corda-se aqui a re­co­men­dação do Con­selho In­ter­na­ci­onal para a Ex­plo­ração do Mar (ICES) que, após 2015, chegou a re­co­mendar pesca zero à Sar­dinha! Pelo ca­minho, per­deram-se mi­lhares de postos de tra­balho.

Tendo o equi­lí­brio das es­pé­cies como meta as­se­gu­rada, a grande pre­o­cu­pação que deve re­vestir a nova Po­lí­tica Comum de Pescas é a re­cu­pe­ração e va­lo­ri­zação so­cial do sector, o apoio à en­trada e fi­xação de jo­vens na pesca, a ga­rantia de sa­lá­rios dignos e uma re­no­vação da frota que con­fira o con­forto e a se­gu­rança ne­ces­sá­rios.

Torna-se es­sen­cial as­so­ciar a di­na­mi­zação da pesca à cons­trução e re­pa­ração naval, ao co­mércio de pro­xi­mi­dade, à in­dús­tria con­ser­veira e à ins­ta­lação de en­tre­postos fri­go­rí­ficos e a es­tru­turas de trans­for­mação de pes­cado que possam as­se­gurar que todas as cap­turas são apro­vei­tadas, re­du­zindo o des­per­dício.

Após 38 anos de adesão à CEE/​UE, as co­mu­ni­dades pis­ca­tó­rias as­sumem-se como de­pri­midas, re­vol­tadas e ex­pec­tantes. A mon­tanha bu­ro­crá­tica eter­niza os pro­cessos. A tão pro­pa­lada tran­sição di­gital, muito por via da pla­ta­forma BMAR, tem sido um de­sastre que em vez de ace­lerar faz de­ses­perar quem dela de­pende.

A iden­ti­fi­cação de novos e ve­lhos pro­blemas exige uma in­tensa in­ter­venção do Par­tido e das or­ga­ni­za­ções do sector: o in­ves­ti­mento falta nos portos, como nos casos de Lei­xões ou da Fi­gueira da Foz, apenas para dar dois exem­plos; as li­mi­ta­ções no acesso a certas es­pé­cies, como o goraz ou o atum pa­tudo, nas re­giões au­tó­nomas, que ra­pi­da­mente atingem o li­mite das pos­si­bi­li­dades de pesca atri­buídas; a cri­ação dos tais 30% de áreas ma­ri­nhas pro­te­gidas no País, feitas muitas vezes em cima de pes­queiros tra­di­ci­o­nais da pe­quena pesca ar­te­sanal, como é o exemplo da re­serva da Pedra do Va­lado, na costa de Al­bu­feira, Lagoa e Silves; a ocu­pação do es­paço ma­rí­timo por pro­jectos de aqua­cul­tura offshore, de­sig­na­da­mente no Al­garve, que, dei­xando de ser viá­veis, são dei­xados no mar, cons­ti­tuindo-se como au­tên­ticos campos de lixo; ou, con­ti­nu­ando pelo Al­garve, novos riscos como o que se prevê ser a de­vo­lução ao mar de lamas e águas tra­tadas em cima de pes­queiros de baixa pro­fun­di­dade e ricos em bi­o­di­ver­si­dades ao largo da costa de Quar­teira, tendo em conta o pro­jecto de uma des­sa­li­ni­za­dora; a anun­ciada ins­ta­lação de 32000 km2 de par­ques eó­licos offshore, mais uma vez lo­ca­li­zados em zonas his­to­ri­ca­mente ex­plo­radas pela pesca.

Para além do factor cen­tral da di­fe­rença dos preços de pri­meira venda em lota e os pra­ti­cados ao con­su­midor final, que devem ser re­gu­lados, acresce toda a seg­men­tação dos preços das vá­rias es­pé­cies na pri­meira venda, com re­curso a va­riá­veis como o ta­manho, a qua­li­dade, a apre­sen­tação e fres­cura. É também neste quadro, tendo em conta a re­par­tição da ri­queza ge­rada ao longo da ca­deia de valor na pesca, que se for­jaram, ao longo dos tempos, as co­mu­ni­dades ma­rí­timas e pis­ca­tó­rias que foram ocu­pando o li­toral por­tu­guês e que urge não perder, evi­tando a des­ca­rac­te­ri­zação de tudo, onde a apo­logia de­sig­na­da­mente da ati­vi­dade tu­rís­tica, tem aju­dado a acen­tuar este ca­minho.

As cul­turas e iden­ti­dades lo­cais li­gadas ao tra­balho no mar são de uma ri­queza in­cal­cu­lável, e que não se tra­duzem de forma nu­mé­rica porque ocupam o campo de ver­dade, da hu­ma­ni­zação das re­la­ções e do pulsar da vida que existe, ainda que nunca isenta dos re­sul­tados ob­tidos pelas forças so­ciais em con­fronto nestas co­mu­ni­dades.

Falar dos efeitos, apontar rumos, sem iden­ti­ficar a origem dos pro­blemas, pa­rece-nos um não ca­minho! Daí o con­texto, os alertas, a ca­rac­te­ri­zação e os ob­jec­tivos apon­tados.