Trafulhices
Lê-se e não se acredita. João Miguel Tavares espraia-se em assertivas constatações sobre a desproporcionalidade que sistemas eleitorais como os da França e Reino Unido introduzem na perversão e distorção da vontade expressa pelos eleitores e a completa dissonância entre votos e mandatos que induzem. Ao sabor da leitura ser-se-ia levado a imaginar o óbvio, ou seja, a verberação de tais sistemas, o distanciamento dessa alquimia fraudulenta que transforma o que é minoritário no seu contrário. Mas não.
Numa guinada que desequilibraria qualquer um por mais sentado que esteja ou tamanho de calçado que use, JMT consegue concluir o inverso. Imbuído de inconformismo com o regime democrático em que se vê obrigado a conviver, deslumbrado com as viçosas expressões democráticas externas a que se rende, «não consta que França e muito menos o Reino Unido sejam democracias mais atrasadas do que Portugal», apressa-se a saudar em mais uma daquelas investidas que move personagens do burgo para exigir alteração do sistema eleitoral em nome da personalização dos mandatos e da redução do desperdício de votos.
Não são de hoje estes ímpetos de revisão da lei eleitoral dos inconformados com a proporcionalidade. Deixemos de lado os apologético hinos à cidadania, as loas à «sociedade civil», o apego aperfeiçoativo que reclamam. Entendamos-los como aplainamentos prévios para os obscuros objectivos que prosseguem e, sobretudo, não nos impressionemos com as aparentes inquietações que vão desfiando: as imperfeições da proporcionalidade do método de Hondt; o frágil poder de escolha dos eleitores; a inexistente responsabilização dos eleitos. A que se poderá adicionar o mais eloquente, estilístico e imbatível propósito de «levar a cidadania a reencontrar-se com a política». A frase, por aí repetida, seria digna de estante de academia se não fosse, em substância, manhosa.
Falem claro. O que almejam é construir um sistema eleitoral golpista, capaz de transformar minorias no seu contrário, construir artificialmente maiorias que de todo são recusadas pelo voto expresso, substituir o método de Hondt por uma traficância regulamentar baseada numa cirúrgica delimitação de círculos, ver a proporcionalidade esvaída em manigâncias, truques e trafulhices. Um hino à adulteração da vontade dos eleitores sob os acordes da Marselhesa ou de God Save the King.