Breves notas sobre as actividades económicas e Forças Armadas

Fernando Sequeira

As Forças Ar­madas têm como missão cons­ti­tu­ci­o­nal­mente atri­buída a de­fesa da so­be­rania e da in­de­pen­dência na­ci­onal

Pen­samos que são di­fusas e por vezes mesmo con­tra­di­tó­rias, as per­cep­ções que grande nú­mero de por­tu­gueses tem, ac­tu­al­mente, sobre a ne­ces­si­dade, missão e im­por­tância po­lí­tica e mesmo his­tó­rica das Forças Ar­madas. Tais vi­sões vão desde a pers­pec­tiva de que estas têm um ca­rácter quase ob­so­leto até àqueles que en­tendem que Por­tugal de­verá con­ti­nuar a en­viar mi­li­tares na­ci­o­nais para con­flitos no ex­te­rior, que nada têm a ver com o País.

Ambas as vi­sões, de­correm de po­si­ções ide­o­ló­gicas, por vezes, quase que con­tra­di­tó­rias, mas ambas saídas do baú das ve­lha­rias re­ac­ci­o­ná­rias. Ori­en­ta­ções avulsas e er­rá­ticas que des­con­si­deram com­ple­ta­mente ca­te­go­rias his­tó­rico-po­lí­ticas, tais como so­be­rania e in­de­pen­dência na­ci­onal.

Assim, por um lado, há cerca de duas dé­cadas foi ex­tinto o Ser­viço Mi­litar Obri­ga­tório e, por outro, co­meçou a acen­tuar-se um pe­ri­goso des­cen­tra­mento es­tra­té­gico da missão das Forças Ar­madas, para as co­locar quase ao ex­clu­sivo ser­viço dos in­te­resses do Im­pério, como foram os casos das mis­sões da NATO no Afe­ga­nistão e no Ko­sovo.

Porém, muito para além destas sub­ver­sões, con­tinua a existir um re­fe­ren­cial es­tra­té­gico que se so­brepõe a quais­quer ou­tros, e que é o re­fe­ren­cial cons­ti­tu­ci­onal. De facto, há quase 50 anos que a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa con­sagra, na sua or­ga­ni­zação in­terna, mesmo um tí­tulo res­pei­tante às Forças Ar­madas e à sua missão, o Tí­tulo X - Forças Ar­madas, onde, no ponto 1 do ar­tigo 273.º, se de­ter­mina que «É obri­gação do Es­tado as­se­gurar a de­fesa na­ci­onal…», tendo esta, con­forme consta do ponto 2 do mesmo ar­tigo, “por ob­jec­tivos, ga­rantir [...], de­sig­na­da­mente, … a in­de­pen­dência na­ci­onal, a in­te­gri­dade do ter­ri­tório e a li­ber­dade e se­gu­rança das po­pu­la­ções contra qual­quer agressão ou ame­aças ex­ternas…».

Por outro lado, e em sequência, no ponto 1 do ar­tigo 275.º, é afir­mado que «Às Forças Ar­madas in­cumbe a de­fesa mi­litar da Re­pú­blica...», e que estas, con­forme de­cla­rado no ponto 2 do mesmo ar­tigo, «com­põem-se ex­clu­si­va­mente de ci­da­dãos por­tu­gueses».

Como co­ro­lário da in­cum­bência atri­buída às Forças Ar­madas da de­fesa mi­litar da Re­pú­blica, exige-se a dis­po­ni­bi­li­dade de ade­quados sis­temas de ar­ma­mento, isto é, em quan­ti­dade, qua­li­dade, mo­der­ni­dade e pron­tidão, com vista a estas po­derem su­portar ma­te­ri­al­mente o cum­pri­mento da sua missão cons­ti­tu­ci­onal.

Sobre a origem dos bens e ser­viços para as Forças Ar­madas
Desde já se co­loca uma questão do do­mínio es­tra­té­gico, ou seja, a da origem de tais bens e ser­viços ser con­ci­liável com o exer­cício da so­be­rania na­ci­onal. Isto sig­ni­fica que, sempre que pos­sível, todos os sis­temas de armas para as Forças Ar­madas sejam apro­vi­si­o­nados no âm­bito de uma sig­ni­fi­ca­tiva ca­pa­ci­dade na­ci­onal de pro­jecto e fa­brico, no quadro de um es­pectro que os res­pon­sá­veis mi­li­tares en­tendam como es­sen­cial para o cum­pri­mento da sua missão.

To­davia, este ob­jec­tivo de uma cada vez menor de­pen­dência ex­terna não é fácil de al­cançar face às con­di­ções ob­jec­tivas, e, também sub­je­tivas, ac­tu­al­mente exis­tentes, dada, par­ti­cu­lar­mente, uma cada vez maior in­cor­po­ração de C&T na con­cepção e fa­brico dos equi­pa­mentos.

Há já algum tempo que o País se vem de­fron­tando com uma cada vez maior con­tra­dição, a saber, entre a ne­ces­si­dade de au­to­nomia no apro­vi­si­o­na­mento dos di­versos sis­temas de armas e as con­di­ções ob­jec­tivas das infra-es­tru­turas de I&D e as pro­fundas de­bi­li­dades do apa­relho pro­du­tivo em geral, e da pro­dução de ma­te­rial de guerra em par­ti­cular, no quadro de uma im­pe­tuoso pro­cesso de com­ple­xi­fi­cação do ar­ma­mento.

Con­tudo, as nossas pro­postas de au­to­nomia nada têm a ver com as (no mí­nimo ab­surdas) pro­postas de di­na­mi­zação da eco­nomia em geral es­co­rada nas ac­ti­vi­dades as­so­ci­adas às ne­ces­si­dades mi­li­tares, uma es­pécie de Key­ne­si­a­nismo mi­litar.

E, ainda, a con­tra­dição in­sa­nável entre de­ci­sões to­madas num pas­sado não lon­gínquo e a pro­posta de Key­ne­si­a­nismo mi­litar, ambas da res­pon­sa­bi­li­dade dos mesmos ac­tores – PS, PSD e CDS – que, a partir do início da dé­cada de 80, pro­mo­veram o des­man­te­la­mento de pra­ti­ca­mente todas as em­presas, so­bre­tudo as in­dus­triais, que su­por­tavam o fa­brico de equi­pa­mentos de uso mi­litar, de­sig­na­da­mente de um sig­ni­fi­ca­tivo leque de armas pe­sadas, mé­dias e li­geiras e suas mu­ni­ções, seja na sua com­po­nente me­ta­lúr­gica e me­ta­lo­me­câ­nica, seja nas suas com­po­nentes quí­mica e pa­raquí­mica.

E tal pro­cesso in­sere-se har­mo­niosa e quase si­mul­ta­ne­a­mente em duas di­nâ­micas de des­va­lo­ri­zação es­tra­té­gica da eco­nomia na­ci­onal, a saber: a de­sin­dus­tri­a­li­zação e a pri­meira bolha imo­bi­liária, as­so­ciada a uma alu­ci­nada so­bre­pro­dução.

Por exemplo, os ter­renos onde es­tavam ins­ta­ladas a Fá­brica de Armas Li­geiras de Braço de Prata e a Fá­brica Na­ci­onal de Mu­ni­ções de Armas Li­geiras estão ac­tu­al­mente ocu­pados por con­do­mí­nios, um dos quais de super-luxo, à beira Tejo.

Re­jei­tando em ab­so­luto quer a quase total de­pen­dência do ex­te­rior em que ac­tu­al­mente nos en­con­tramos, quer a utó­pica, mas, si­mul­ta­ne­a­mente, eco­nó­mica e po­li­ti­ca­mente pe­ri­gosa, visão da mi­li­ta­ri­zação da eco­nomia, pen­samos, con­tudo, que, em­bora de forma muito re­a­lista, se deva pro­mover, en­quanto exi­gência na­ci­onal, a re­a­ni­mação, com o es­pectro o mais alar­gado pos­sível, da pro­dução de bens e ser­viços de su­porte das Forças Ar­madas – seja di­na­mi­zando e mo­der­ni­zando al­gumas em­presas que ainda existam, seja, como que res­sus­ci­tando al­gumas áreas crí­ticas, seja, fi­nal­mente, apoi­ando novas áreas cor­res­pon­dentes a novos pro­dutos de uso mi­litar nunca antes pro­du­zidos em Por­tugal.

 

Re­trato e pers­pec­tiva

Em traço grosso, a si­tu­ação por grupo é a se­guinte:

Ac­ti­vi­dades que não de­sa­pa­re­ceram com­ple­ta­mente, mas es­tando muito di­mi­nuídas

In­dús­tria da cons­trução e re­pa­ração naval
Re­cu­perar com­ple­ta­mente a ca­pa­ci­dade pro­du­tiva que existiu no pas­sado, na­tu­ral­mente que mo­der­ni­zada, desde logo para todos os tipos de na­vios, in­cluindo os para fins mi­li­tares.

Dar uma es­pe­cial atenção ao Ar­senal do Al­feite (AA), mas também aos ENVC (que, mesmo pri­va­ti­zado, con­tinua a ter ca­pa­ci­dade de cons­trução de na­vios para a Ar­mada), e mesmo o pró­prio es­ta­leiro de grande re­pa­ração naval da Lis­nave.

O AA de­verá me­recer toda a pri­o­ri­dade no pro­cesso de re­a­ni­mação, au­mento de ca­pa­ci­dade e mo­der­ni­zação, seja na pers­pec­tiva de pro­jecto, seja de cons­trução, face ao seu ac­tual quadro quase co­ma­toso, seja tendo em conta o seu es­pan­toso his­to­rial, par­ti­cu­lar­mente na ver­tente cons­trução, seja, fi­nal­mente, a sua li­gação or­gâ­nica à Ar­mada.

In­dús­tria ae­ro­náu­tica
Seja no quadro da OGMA, seja de ou­tras em­presas de cons­trução ae­ro­náu­tica exis­tentes no País, tal como a Em­braer, ou a criar, que apre­sentem a ver­tente mi­litar, esta ac­ti­vi­dade in­dus­trial es­tra­té­gica de­verá ser apoiada, com vista, de­sig­na­da­mente, a su­bidas na es­cala da au­to­nomia es­tra­té­gica das ca­deias de valor.

Neste quadro, de­verão ser in­te­grados todos os pro­jectos de de­mons­tração ex­pe­ri­mental que es­tejam a ser de­sen­vol­vidos pela pró­pria Força Aérea, de­sig­na­da­mente de ae­ro­naves não tri­pu­ladas.

Ac­ti­vi­dades exis­tentes no pas­sado, mas, en­tre­tanto, ex­tintas

In­dús­trias de ar­ma­mento e mu­ni­ções
O com­pleto de­sa­pa­re­ci­mento destas ac­ti­vi­dades, su­por­tadas por tec­no­lo­gias de nível médio, ou médio-alto, mas, regra geral, não de ponta, con­du­ziram à im­por­tação de todo o tipo de ar­ma­mento li­geiro, médio e pe­sado e res­pec­tivas mu­ni­ções.

A si­tu­ação de um com­pleto corte com o pas­sado, no­me­a­da­mente em termos de en­ge­nha­rias de pro­duto e de pro­cessos pro­du­tivos, mas, so­bre­tudo, de tra­ba­lha­dores de todos os ní­veis, com qua­li­fi­ca­ções, ex­pe­ri­ên­cias e sa­beres, obri­gará a um pla­ne­a­mento muito cri­te­rioso, com vista à de­fi­nição de hi­e­rar­quias de reins­ta­lação destas uni­dades fa­bris.

De re­ferir que nos úl­timos tempos, o ac­tual go­verno do PSD/​CDS, tem di­vul­gado a in­tenção de ins­talar uma fá­brica de mu­ni­ções.

Novas ac­ti­vi­dades
No quadro de um ri­go­roso pla­ne­a­mento es­tra­té­gico, de­verão ser se­lec­ci­o­nadas e pro­mo­vidas, ac­ti­vi­dades crí­ticas, para as quais exista ca­pa­ci­dade na­ci­onal.

Sobre a pre­sença do Es­tado em sec­tores eco­nó­micos com fins mi­li­tares
En­quanto no pas­sado, pelo menos du­rante mais de um sé­culo e até ao seu de­sa­pa­re­ci­mento, as ac­ti­vi­dades eco­nó­micas de pro­dução de bens e ser­viços de uso, ex­clu­siva ou do­mi­nan­te­mente mi­litar, ti­nham lugar em em­presas sob con­trolo pú­blico, quadro ju­rí­dico exi­gido, face ao seu ca­rácter crí­tico para o exer­cício da so­be­rania, a si­tu­ação é hoje com­ple­ta­mente di­fe­rente.

Como já ob­ser­vámos, para além do com­pleto de­sa­pa­re­ci­mento da ver­tente ma­te­rial de guerra em sen­tido es­trito, das res­tantes ac­ti­vi­dades que ainda per­ma­necem, so­mente o AA con­tinua com­ple­ta­mente pú­blico, e mesmo as OGMA, em­bora com pre­sença pú­blica, en­contra-se sob o con­trolo es­tra­té­gico da Em­braer.

Por outro lado, ocorreu, pelo menos desde a vi­ragem do sé­culo, uma com­pleta mu­dança no po­si­ci­o­na­mento es­tra­té­gico das novas ac­ti­vi­dades eco­nó­micas para fins mi­li­tares exis­tentes em Por­tugal, que, para além de dei­xarem de estar sob a al­çada do Es­tado por­tu­guês, nem se­quer de ca­pi­tais pri­vados na­ci­o­nais são, tendo sido pri­va­ti­zadas e se­gui­da­mente des­na­ci­o­na­li­zadas, umas, em­bora a grande mai­oria sejam em­presas de ca­pital es­tran­geiro, e es­tando todas, di­recta ou in­di­rec­ta­mente, or­gâ­nica ou fun­ci­o­nal­mente as­so­ci­adas às grandes cor­po­ra­ções do com­plexo-mi­litar-in­dus­trial do im­pe­ri­a­lismo, par­ti­cu­lar­mente na sua ver­tente União Eu­ro­peia.

Isto é, o seu foco só por acaso é que terá a ver com as Forças Ar­madas na­ci­o­nais, elas pró­prias, como já an­te­ri­or­mente as­si­na­lámos, com­ple­ta­mente des­fo­cadas da sua missão cons­ti­tu­ci­onal.

Esta si­tu­ação, por um lado, de um quase com­pleto vazio pro­du­tivo, e, por outro, do foco estar em in­te­resses es­tra­té­gicos de tudo, menos do Es­tado por­tu­guês, torna ainda mais pre­mente a ab­so­luta ne­ces­si­dade do Es­tado re­as­sumir o con­trolo do sector.