Numa conversa sobre a Liberdade no teatro, na qual participaram Domingos Lobo e as actrizes Rita Lello, Sara Túbio Costa e Sónia Botelho, ficou claro que o teatro que se faz em Portugal, se já não sofre a pressão e vigília da Censura, não deixou de ter outros constrangimentos que o impedem de criar em Liberdade: o financiamento e os espaços em que desenvolvem e dão a ver os seus espectáculos, são algumas dessas preocupações. É necessário que o teatro a fazer questione criticamente, não apenas a realidade do país que habitamos, mas a realidade que nos envolve neste tempo complexo e imprevisível em que os chacais andam de novo à solta. Penso que algumas destas questões tiveram resposta à altura na programação deste ano do Avanteatro.
A abrir a nossa Festa, o espaço do Avanteatro foi curto para tanto público que queria assistir à estreia da peça Amor é Um Fogo que Arde Sem se Ver, de Hélder Mateus da Costa, pela Barraca, que o próprio Hélder Costa encenou, com Maria do Céu Guerra. Um elenco jovem, uma encenação ágil e um texto que nos dá a ver um Camões humano, febril, aventureiro e apaixonado, longe do poeta anquilosado de que a ditadura se serviu para criar o estigma da raça superior, dos heróis míticos, num processo de subversão da realidade, tão caro aos regimes fascistas. O Camões que Hélder Costa nos dá nesta peça, é o poeta que convive com o povo, que com ele sofre a fome, a miséria e os maus-tratos, que é preso, vigiado pela inquisição, desprezado por um poder régio medíocre e alheio às necessidades dos mais pobres, que deles se serve como carne para canhão em África e nas naus da Índia. Um Camões amargurado não apenas com a sua madrasta sorte, mas com a do povo do qual foi solidário e cantou como nenhum outro. A música inspirada do maestro António Victorino d’Almeida sublinha, de modo impressivo, as passagens mais expressivas deste épico.
Os mais pequenos tiveram, em duas manhãs, o privilégio de assistir a O Pequeno Livro dos Medos, magnífico texto de Sérgio Godinho, que Elsa Galvão, actriz de primeiríssima água, interpretou de forma ágil, coloquial e dirigida aos destinatários. As famílias responderam ao apelo e preencheram com a prole, o espaço do Avanteatro, para aprenderem todos, de maneira didáctica e divertida, como se torce o medo. O tal que não pode ter tudo, como nos ensinou Alexandre O’Neil e Sérgio reitera.
A Companhia Mefisteatro, trouxe-nos um inesperado, porque ritualizado e fora dos registos habituais, um notável Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, em que o poético não deixa de incidir sobre a miséria e fome que grassavam na nossa longa e desesperada Idade Média. Interpretação modelar de Eunice Correia.
A peça A Grande Imprecação Diante das Muralhas da Cidade, do dramaturgo alemão Tankred Dorst, pelo Teatro das Beiras, foi também um momento alto. Vindo da Covilhã, o Grupo deu-nos a ver um dos grandes textos do teatro contemporâneo, numa encenação irrepreensível de Gil Salgueiro Nave, que definiu com rigor as linhas de violência, recusa, amor e luta contra a incidia, presentes no fortíssimo texto de Dorst. Tradução do nosso querido e saudoso Mário Barradas, que em 1973, com as limitações do tempo, encenou este texto para o grupo Os Bonecreiros. Mais uma grande noite de teatro.
Domingo, tivemos, uma vez mais, o Grupo de Teatro A Barraca, desta vez com um monólogo superiormente interpretado por Rita Lello (que maravilha de actriz), de autoria de Paloma Pedrero, baseado na vida da escritora e filósofa feminista Mary Wollstonecraft, autora de Reivindicação dos Direitos da Mulher, a primeira que no século XVIII assumiu com coragem, numa Inglaterra patriarcal, essa condição. De Mary para Mary é um texto intenso, dramático, poético e comovente, em que Mary diz à filha Mary Shelley, para que os homens oiçam: não permitas nunca que te façam comer o pão amargo da dependência. Luta, luta para seres tu própria. E não temas nunca o que os outros possam pensar. O Teatro na sua função primordial, em pleno.
A Festa terminou, no que ao teatro diz respeito, da melhor maneira, com a peça concebida pelo Teatro Estúdio Fontenova, a partir do texto de Álvaro Cunhal Os Barrigas e os Magriços. A luta de classes num texto claramente didáctico, dirigido aos mais jovens, mas que Sara Túbio Costa, com conceptual engenho, transformou num espectáculo para todos, que a todos seduziu.
Para o ano há mais.