Perplexidades, omissões e questionáveis tendências

Rui Fernandes

Pouco ou nada se diz quanto ao acesso à Jus­tiça por parte dos tra­ba­lha­dores e do povo

Na Jus­tiça, como nou­tras áreas da vida na­ci­onal, o que não faltam são re­la­tó­rios, con­fe­rên­cias e planos, ra­di­o­gra­fando os pro­blemas e su­ge­rindo so­lu­ções. Muitos destes, trans­for­mados aos longo dos anos nos de­no­mi­nados Pactos para a Jus­tiça, en­vol­vendo o PS e o PSD (e vice-versa), que, fu­gindo ao es­sen­cial, foram in­tro­du­zindo al­te­ra­ções ge­rando novos pro­blemas, em vez de res­ponder aos pro­blemas de fundo. E não faltam também po­si­ci­o­na­mentos e su­ges­tões oriundas das es­tru­turas pro­fis­si­o­nais res­pec­tivas – Ordem dos Ad­vo­gados, Sin­di­cato dos Ma­gis­trados do Mi­nis­tério Pú­blico, As­so­ci­ação Sin­dical dos Juízes Por­tu­gueses, mas também dos Fun­ci­o­ná­rios Ju­di­ciais, dos So­li­ci­ta­dores, etc., umas com abor­da­gens mais ho­lís­ticas, ou­tras, cen­trando-se mais nos as­pectos li­gados à sua pro­fissão, mas todas con­tri­buindo para um olhar global dos pro­blemas, dos even­tuais es­tran­gu­la­mentos, das me­didas ne­ces­sá­rias; ou seja, também na Jus­tiça não há falta de ma­te­rial de tra­balho, o que há é mesmo inércia na adopção das me­didas ne­ces­sá­rias, já que ou­tras foram sendo in­tro­du­zidas vi­sando outro tipo de ob­jec­tivos.

Casos re­centes ge­raram com­pre­en­sí­veis per­ple­xi­dades e apre­en­sões e deram origem a um vasto con­junto de es­critos. Al­guns dos au­tores ti­veram res­pon­sa­bi­li­dades po­lí­ticas vá­rias ao longo dos anos. Se nal­guns casos há quem man­tenha uma linha de co­e­rência em so­lu­ções que avançam e que visam, hoje como ontem, acen­tuar as li­nhas de go­ver­na­men­ta­li­zação da Jus­tiça, ou­tros há que sin­ce­ra­mente estão pre­o­cu­pados. São as­si­na­lados as­pectos que não podem deixar de levar qual­quer ci­dadão a in­ter­rogar-se, como seja o das fugas ao se­gredo de jus­tiça, ope­ra­ções de busca com trans­missão em di­recto em ca­nais te­le­vi­sivos, es­cutas te­le­fó­nicas a uma pessoa anos a fio, etc. Entre as te­má­ticas, falam da cor­rupção que im­porta com­bater, da mo­ro­si­dade da Jus­tiça, da ac­ti­vação da hi­e­rar­quia no Mi­nis­tério Pú­blico, etc. Falam de temas ou as­suntos, mas omitem res­pon­sa­bi­li­dades por op­ções e de­ci­sões das forças po­lí­ticas a que per­tencem.

Por exemplo, há pouco tempo o de­pu­tado An­tónio Fi­lipe re­latou o caso de um con­sórcio pri­vado que in­tentou uma exe­cução contra o Es­tado no mon­tante de 202 mi­lhões de euros, de­cor­rente de uma con­de­nação em tri­bunal ar­bi­tral. O Es­tado ce­le­brou com o re­fe­rido con­sórcio um con­trato de con­cessão, cujo visto foi re­jei­tado pelo Tri­bunal de Contas, im­pe­dindo desta forma que o Es­tado exe­cu­tasse o con­trato. Re­fira-se que o acórdão do Tri­bunal de Contas (TC) ne­gando o visto prévio a um con­trato, após trân­sito em jul­gado, é obri­ga­tório para todas as en­ti­dades pú­blicas e pri­vadas. Apesar da de­cisão do TC, o con­sórcio apre­sentou ao Es­tado o pe­dido de cons­ti­tuição de um Tri­bunal Ar­bi­tral, com o ob­jec­tivo de obter a com­pen­sação que en­tendia ser-lhe de­vida face à re­cusa de visto por parte do Tri­bunal de Contas! O tri­bunal ar­bi­tral con­denou o Es­tado a pagar uma in­dem­ni­zação de cerca de 150 mi­lhões de euros.

Isto é, o Es­tado foi con­de­nado a in­dem­nizar o con­sórcio pri­vado porque não cum­priu um con­trato que não po­deria cum­prir por ter sido de­cla­rado ilegal pelo Tri­bunal de Contas. Eis um exemplo para o qual aler­tava Ma­nuel So­ares, à época pre­si­dente da As­so­ci­ação Sin­dical dos Juízes Por­tu­gueses, di­zendo: «Não está certo, não pode estar certo, que o Es­tado seja con­de­nado por um tri­bunal ar­bi­tral, se­creto, sem con­trolo de le­ga­li­dade do Mi­nis­tério Pú­blico, a pagar a uma em­presa pri­vada cen­tenas de mi­lhões de euros por vi­o­lação de uma cláu­sula con­tra­tual que o Tri­bunal de Contas já tinha con­si­de­rado nula».

Ora, não se ouve uma linha sobre o fim da ar­bi­tragem. Falam da ne­ces­si­dade de uma hi­e­rar­quia forte no Mi­nis­tério Pú­blico onde, se­gundo dizem, cada um faz o que quer e como quer, desde a en­trada do novo es­ta­tuto em Ja­neiro de 2020. Ora, o con­junto de dis­po­si­tivos le­gais em vigor1 não au­to­riza aquela con­clusão. Ou seja, é pre­ciso dis­tin­guir entre o con­sa­grado nos en­qua­dra­mentos le­gais em vigor e prá­ticas que, even­tu­al­mente, as ig­noram ou sub­vertem e que se existem, devem na­tu­ral­mente ser ob­jecto de in­ter­venção dos ór­gãos com essa res­pon­sa­bi­li­dade.

Mas também pouco ou nada dizem sobre os pro­blemas que afectam mi­lhares de ad­vo­gados, entre os quais a inal­te­rada, há 20 anos, ta­bela de ho­no­rá­rios ou o ar­ras­tado pro­blema da CPAS (Caixa Pre­vi­dência), os fun­ci­o­ná­rios ju­di­ciais (es­ta­tuto), etc. Re­ferem a mo­ro­si­dade, e bem, na jus­tiça ad­mi­nis­tra­tiva e fiscal, mas nada dizem sobre a in­su­fi­ci­ência de meios hu­manos para lhe dar res­posta. Como pouco ou nada dizem quanto ao custo no acesso à Jus­tiça por parte dos tra­ba­lha­dores e do povo, ou seja, de quem menos tem e menos pode.

Se é ver­dade que prá­ticas re­centes sus­citam le­gi­timas in­ter­ro­ga­ções, estas não podem con­duzir a so­lu­ções que, não res­pon­dendo aos pro­blemas, tendem a pre­tender au­mentar a in­ter­fe­rência po­lí­tica na con­dução da Jus­tiça.

 

1An­tónio Ven­ti­nhas, Sol, 19 de Agosto de 2024





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