- Nº 2657 (2024/10/31)

A claridade da poesia de António Ramos Rosa (1924-2013)

Argumentos

 

António Ramos Rosa é uma das grandes vozes da lírica portuguesa da segunda metade do século XX. O poeta, nascido em Faro, militou no MUD Juvenil e revelou-se em 1952, com o livro Grito Claro, o qual, de imediato, granjeou a atenção da crítica e a adesão do público mais propenso à leitura de poesia. Embora já com obra ensaística e poética publicada na revista Árvore (1951-1953), e editor da revista Cadernos do Meio-Dia, que a PIDE encerrou em 1960, é com Grito Claro e Voz Inicial, que o poeta se tornaria reconhecido entre os seus pares, mas é com Viagem Através de Uma Nebulosa, que a claridade discursiva da sua poética se afirma como recorrência determinante no modo de desnudar as palavras, a sua linearidade e rigor no processo interno do discurso poético.

Algo de novo, do peso interior das palavras e da sua usança, que a poética de Ramos Rosa singularmente transporta para o nosso universo lírico dos finais dos anos 1950, ainda dominado pela marcante intervenção cívica e criativa de vozes singulares do nosso neorrealismo, como João José Cochofel, Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca, Armindo Rodrigues, entre muitos outros, geração a que, de resto, pertenceu, careando, no entanto, algo de insinuante e de ruptura estética face ao trabalho desenvolvido pelos seus contemporâneos, impondo à matéria poética uma inusitada intersecção no modo de abordagem dos fenómenos sociais – veja-se o Poema Dum Funcionário Cansado, pelo qual, se ainda perpassam as questões sociais do neorrealismo interagem no discurso a náusea sartriana, o desamparo de um homem que reflecte sobre a sua condição de assalariado sem horizontes, o sentido individual da culpa e da impotência: a minha alma não dança com os números/tento esconde-la envergonhado […] São as palavras cruzadas do meu sonho/palavras soterradas na prisão da minha vida/isto todas as noites do mundo uma noite só comprida/num quarto só.

Há algo de gorkiano neste solitário desespero, neste modo de trazer o coração confundido e a rua é estreita, num espaço em que as casas engolem-nos/sumimo-nos/estou num quarto só num quarto só/com os sonhos trocados/com toda a vida às avessas a arder num quarto só. É a angústia do homem contemporâneo que Ramos Rosa transporta para a poesia, essa consciência crítica de uma mais vasta realidade, a condição histórica do homem e o seu lugar no cosmos.

As imagens, a metáfora incomum, o seu modo de habitar o poema, essa fala plana, simples, vagarosa, dura, deserta, como a definiu Gastão Cruz, outro poeta que recentemente nos deixou. Essa “nudez das palavras” está presente em muitos dos poemas de Viagem através de uma Nebulosa, onde o dicionário pessoal de António Ramos Rosa, se evidencia: Procurei sempre um lugar/onde não respondessem, /onde as bocas falassem num murmúrio/ quase feliz/as palavras nuas que o silêncio veste. Palavras como lugar, nudez, flor, rapariga, amigo, irmão, mãe, beijo, estrela, música, solidão, fazem parte do léxico com o qual o autor de Estou Vivo e Escrevo Sol, uma das suas antologias pessoais onde foi revisitando a sua vasta obra, construiu ao longo de várias décadas de labor criativo, uma obra poética ímpar.

Obra construída tendo como base a abordagem sensorial das imagens e dos sentidos, do corpo, das sensações e de um metafísico olhar sobre a solidão e o desamparo do outro, sabendo, no entanto, que as palavras criam universos, que os revelam em inumeráveis sinais, ou, numa dimensão mais lírica, como se descobre a pele, o corpo quando nele tocamos, não deixando essa fala de simbolizar um esquivo erotismo: Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio/ sou o teu lábio e a coxa da tua coxa/sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo/sou a sombra que conhece a luz que a submerge. A palavra como imperecível símbolo das coisas, dessa enigmática profusão da terra.

Ao longo de 55 anos de vida literária, António Ramos Rosa publicou cerca de 80 títulos, entre poesia e ensaio; venceu importantes prémios, como o Prémio Pessoa, em 1988, o Grande Prémio de Poesia da APE, em 1989 e 2005; Medalha de Mérito Cultural, em 2006; foi agraciado com as condecorações de Grande Oficial da Ordem Militar de San’tiago da Espada, em 1992, e com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, em 1997.

Poeta de intermitências instintivas e de mundos convexos, dele dirá Óscar Lopes ser um poeta com obra onde coexistem um extremo pudor dos sentimentos ou ideais nomeáveis e a materialidade mais óbvia (a terra, a luz, uma pedra, um muro, ossos). Uma poesia onde, apesar dos pesares, se sabe que A vida continua. /Certas coisas que pareciam mortas/estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.

 

Domingos Lobo