- Nº 2667 (2025/01/9)

Justiça – o essencial e o acessório

Argumentos


A Justiça tem ocupado considerável espaço mediático, muito do qual com abordagens perversas. Haverá sempre, nesta área como em todas, elementos de exemplo para criticar. E não se ignora ou subestima o impacto particular desta área na vida de pessoas. Mas não se afigura razoável tomar a parte pelo todo ou passar por cima de elementos de enquadramento quando se abordam determinadas situações em concreto.

O papel do Ministério Público (MP) em Portugal tem muitos elementos diferenciadores de outros países. Como refere, em artigo publicado, a Procuradora-Geral Adjunta Alexandra Chícharo Neves, «Portugal tinha (2022) cerca de 16,69 magistrados do MP por cada 100 mil habitantes – o que nem sequer é o mais alto, porquanto no Liechtenstein havia 71 magistrados para cada 100 mil habitantes, no Montenegro e na Croácia 43 e na Eslovénia 42.

Porém, não é menos verdade que as funções asseguradas pelo MP têm caraterísticas únicas em Portugal, indo muitíssimo além da intervenção na jurisdição penal». E acrescenta: «Basta dizer que em mais nenhum o MP patrocina os trabalhadores. E esta não é uma competência menor atento o nosso frágil regime de apoio e acesso ao direito – onde a classe média, afogada em dívidas com as prestações da casa e do carro, não fica isenta do pagamento de custas e, sem o MP, ainda teria de suportar os honorários do advogado». Estes dados-síntese ajudam a compreender que estabelecer comparações com outras realidades sem nada referir de contextualização só visa propiciar visões distorcidas da realidade.

Há quem, desde logo a ministra da Justiça, fale muito de corrupção, mas o que vamos vendo, para além de palavras, é o anúncio de algumas medidas que parecem surgir para evitar outras como seja o fim dos tribunais arbitrais. Por outro lado, há os que repetem a urgência da legalização da «representação organizada de interesses», mais conhecido por lobbying, como se fosse a panaceia para o combate à corrupção, quando em boa verdade é legalizar o tráfico de influências.

Como não nos temos cansado de afirmar, o combate à corrupção faz-se com medidas que fechem as portas giratórias entre cargos públicos e grandes empresas, que acabem com a promiscuidade entre o interesse público e interesses privados, que garantam a subordinação do poder económico ao poder político democrático.

E também é necessário mais magistrados, mais peritos, mais funcionários judiciais, sem os quais a aplicação da justiça tropeça. Tropeça no tempo de resposta e tropeça no cumprimento dos quesitos estabelecidos para ocupação de determinadas funções. Tropeções que geram todo um outro conjunto de problemas, desde logo o de gerar percepções erradas. Com isto não se está a negar que tal ou tal aspecto legislativo não pode ser melhorado, mas o que se recusa é o sistemático saltar por cima do essencial e a consequente ausência de resposta a problemas há muito identificados. Basta olhar para o sistema prisional. As desgraçadas condições de muitos estabelecimentos prisionais. O défice crónico de técnicos de várias especializações. Neste quadro, referir agora a existência de um relatório, inédito segundo algumas notícias, a revelar um conjunto de mazelas graves que já se conhecem há muito tempo, é procurar ludibriar a inacção governamental.

Olhemos para a área do Administrativo, os tribunais que mais morosidade apresentam, onde sem reforço de meios não há forma de responder. Recentemente, a juíza do Supremo Tribunal Administrativo Ana Celeste Carvalho informou que, por força das alterações associadas ao fim do SEF, estão a entrar 900 intimações por dia para direitos, liberdades e garantias. Acrescentou ainda que há no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa juízes com 5000 processos. Como é possível responder num prazo razoável, a números desta dimensão, sem reforço de meios?

Ora, estes, sim, são problemas graves da Justiça. Acontece porém, que estes problemas não fazem o foco mediático.

A ânsia de mostrar serviço por via de mais e mais catadupas legislativas não é caminho.

 

Rui Fernandes