O exemplo da luta heróica do Vietname nos 50 anos da vitória

A Re­pú­blica So­ci­a­lista do Vi­et­name co­me­mora a 30 de Abril cinco dé­cadas sobre a li­ber­tação de Saigão, hoje Ci­dade de Ho Chi Minh, que pôs fim de­fi­ni­tivo à guerra e abriu ca­minho à reu­ni­fi­cação do país, há muito di­vi­dido pelo im­pe­ri­a­lismo. Por de­trás desta vi­tória estão dé­cadas de re­sis­tência e de sa­cri­fí­cios do povo vi­et­na­mita, li­de­rado pelos co­mu­nistas, que com­bateu três po­tên­cias que o ten­taram sub­jugar: a França, o Japão e os Es­tados Unidos da Amé­rica.

O povo vi­et­na­mita, li­de­rado pelos co­mu­nistas, der­rotou três po­tên­cias co­lo­niais e im­pe­ri­a­listas

Há duas ima­gens mí­ticas desse li­ber­tador 30 de Abril de 1975: a do tanque do Exér­cito de Li­ber­tação do Vi­et­name do Sul a der­rubar o portão de ferro do pa­lácio pre­si­den­cial do go­verno fan­toche do Vi­et­name do Sul, con­su­mando a sua der­rota; e a dos norte-ame­ri­canos a aban­do­narem a em­bai­xada pen­du­rados nos he­li­cóp­teros, em fuga pe­rante o avanço ir­re­pri­mível das forças pa­trió­ticas vi­et­na­mitas. Ambas do­cu­mentam a ex­tra­or­di­nária di­mensão da fa­çanha do povo do Vi­et­name.

Mas não mos­tram tudo: a bru­ta­li­dade da guerra im­posta pelo im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, a di­mensão dos crimes co­me­tidos, os sa­cri­fí­cios im­postos ao povo vi­et­na­mita e a te­na­ci­dade e co­ragem dos seus com­ba­tentes, a ge­nial di­recção po­lí­tica e mi­litar dos co­mu­nistas, li­de­rados por Ho Chi Minh, que aca­baria por fa­lecer em 1969, no auge dos com­bates e ainda longe da vi­tória.

A agressão ao Vi­et­name não foi a única do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano nas dé­cadas que se se­guiram à Se­gunda Guerra Mun­dial, apos­tado que es­tava em suster o im­pe­tuoso avanço do mo­vi­mento na­ci­onal li­ber­tador e eman­ci­pador que se ex­primia em vá­rios pontos do mundo. São exem­plos a agressão à Co­reia, o mas­sacre na In­do­nésia, os golpes de Es­tado em África e na Amé­rica La­tina, a cri­ação da NATO ou a pre­sença mi­litar na Eu­ropa. So­freu ou­tras der­rotas, é certo, mas ne­nhuma com a di­mensão e im­pacto da que lhe foi im­posta pelo he­róico povo do Vi­et­name.

A força da so­li­da­ri­e­dade
Não é pos­sível mi­ni­mizar ou até mesmo re­la­ti­vizar a di­mensão da epo­peia do povo vi­et­na­mita e das suas forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias e pa­trió­ticas. Mas também não se pode es­quecer a im­por­tância, para o iso­la­mento e der­rota do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, da so­li­da­ri­e­dade de vá­rios Es­tados, com des­taque para a União So­vié­tica, das fortes mo­vi­men­ta­ções pela paz re­a­li­zadas um pouco por todo o mundo, im­pul­si­o­nadas elas pró­prias pelo exemplo da ex­tra­or­di­nária re­sis­tência vi­et­na­mita.

Nos EUA, a opo­sição à guerra não cessou de crescer, à me­dida que au­men­tava o nú­mero de sol­dados mortos ou que re­gres­savam mu­ti­lados ou trau­ma­ti­zados. No seio das Forças Ar­madas, houve de tudo: de­ser­ções, le­van­ta­mentos e até mesmo ata­ques a ofi­ciais su­pe­ri­ores por parte de sol­dados.

Quando o povo do Vi­et­name venceu, em Abril de 1975, o povo por­tu­guês batia-se pela con­so­li­dação da sua pró­pria vi­tória e pelo avanço da Re­vo­lução que, um ano antes, der­ru­bara a mais longa di­ta­dura fas­cista da Eu­ropa. No Avante! de 1 de Maio ce­le­brou-se a vitória do Vi­et­name, vi­tória da Hu­ma­ni­dade: o 30 de Abril, lia-se, cons­ti­tuiu «o úl­timo acto de uma guerra que, sendo a mais mons­truosa, foi também a mais he­róica de quantas se su­ce­deram no mundo nos úl­timos trinta anos».

 

Ho Chi Minh

«É por ter es­tado es­trei­ta­mente unido e se ter en­tregue de corpo e alma ao ser­viço da nossa classe, do povo e da pá­tria, que o nosso par­tido, desde a sua fun­dação até à pre­sente data, con­se­guiu unir, or­ga­nizar e di­rigir o nosso povo na sua es­for­çada luta, con­du­zindo-o de vi­tória em vi­tória.»

«Ainda que a luta do nosso povo contra a agressão norte-ame­ri­cana, pela sal­vação na­ci­onal, tenha de passar por mais tor­mentos e sa­cri­fí­cios, cul­mi­nará se­gu­ra­mente com a vi­tória total. Isto é uma cer­teza.»

«Os im­pe­ri­a­listas dos Es­tados Unidos cer­ta­mente terão que re­nun­ciar. Nossa pá­tria cer­ta­mente será uni­fi­cada. Nossos com­pa­tri­otas no Sul e no Norte cer­ta­mente serão reu­nidos sob o mesmo céu. Nós, que somos uma nação pe­quena, ob­temos a mais hon­rosa me­dalha por haver der­ro­tado, através de uma he­róica luta, dois grandes im­pe­ri­a­lismos: o francês e o norte-ame­ri­cano, assim como por termos dado uma va­liosa con­tri­buição ao mo­vi­mento mun­dial de li­ber­tação na­ci­onal.»

«Meu maior de­sejo é que o nosso Par­tido e o nosso povo, unindo es­trei­ta­mente seus es­forços, cons­truam um Vietname pa­cí­fico, reu­ni­fi­cado, in­de­pen­dente, de­mo­crá­tico, prós­pero e que dê uma va­liosa con­tri­buição à re­vo­lução mun­dial.»

in Tes­ta­mento de Ho Chi Minh, 1969

 

Uma longa luta pela li­ber­tação

A 2 de Se­tembro de 1945, em nome do Go­verno Pro­vi­sório da Re­pú­blica De­mo­crá­tica do Vi­et­name, Ho Chi Minh pro­clamou a in­de­pen­dência do seu país, li­berto da ocu­pação ja­po­nesa: «Um povo que se opôs tão te­naz­mente à do­mi­nação fran­cesa du­rante quase 90 anos, um povo que, nos úl­timos anos, tão fir­me­mente se po­si­ci­onou e lutou do lado dos Ali­ados contra o fas­cismo, um povo assim tem o di­reito de ser livre, um povo assim tem de ser in­de­pen­dente.»

Visão di­fe­rente ti­nham os co­lo­ni­a­listas fran­ceses, que de­pois da der­rota ja­po­nesa na Se­gunda Guerra Mun­dial pro­cu­raram re­o­cupar os ter­ri­tó­rios asiá­ticos que antes do­mi­naram, desde logo a In­do­china – cor­res­pon­dente aos ac­tuais Vi­et­name, Cam­boja e Laos. Ali en­con­traram um povo de­ter­mi­nado e or­ga­ni­zado: o Par­tido Co­mu­nista do Vi­et­name for­mara-se em 1930 e a Liga para a In­de­pen­dência do Vi­et­name (o Vi­et­minh) agre­gava desde 1941 co­mu­nistas e ou­tros sec­tores re­vo­lu­ci­o­ná­rios e pa­trió­ticos no com­bate ao co­lo­ni­a­lismo francês e à ocu­pação ja­po­nesa. Em Maio de 1954, li­de­rados pelo ge­neral Vo Nguyen Giap, os pa­tri­otas vi­et­na­mitas der­ro­taram as tropas fran­cesas na ba­talha de Dien Bien Phu, co­lo­cando fim a oito anos de guerra e à pre­sença fran­cesa na In­do­china.

A total in­de­pen­dência, porém, ainda tar­daria. Os EUA, que se subs­ti­tuíam aos fran­ceses na re­gião, pro­cu­raram travar a luta an­ti­co­lo­nial e li­ber­ta­dora dos povos asiá­ticos – no Vi­et­name como, antes, na Co­reia – e, na Con­fe­rência de Ge­nebra, im­pu­seram a di­visão do país (que de­veria ser tran­si­tória, até à re­a­li­zação de elei­ções ge­rais, que sa­be­riam que os co­mu­nistas ven­ce­riam): a Norte, a Re­pú­blica De­mo­crá­tica do Vi­et­name, di­ri­gida pelos co­mu­nistas; a Sul, um Es­tado fan­toche su­por­tado pelos EUA, apos­tado em es­magar as forças re­vo­lu­ci­o­ná­rias e pa­trió­ticas que se ba­tiam pela li­ber­tação na­ci­onal e pela reu­ni­fi­cação do país, mas to­tal­mente in­capaz de o fazer sem a in­ter­venção di­recta – e cres­cente – das forças ar­madas norte-ame­ri­canas.

Os EUA mo­bi­li­zaram para o Vi­et­name, du­rante mais de uma dé­cada, dois mi­lhões e meio de sol­dados e ali uti­li­zaram o seu equi­pa­mento mais mo­derno: ar­ti­lharia, avi­ação, mu­ni­ções, ar­ma­mento quí­mico e bi­o­ló­gico. Mas toda a força bruta, toda a cru­el­dade, todos os crimes de guerra foram in­ca­pazes de der­rotar um povo unido e de­ter­mi­nado, ze­loso da sua li­ber­dade e in­de­pen­dência, apoiado pelas forças pro­gres­sistas e anti-im­pe­ri­a­listas de todo o mundo e di­ri­gido por uma força re­vo­lu­ci­o­nária ex­pe­ri­men­tada, pro­fun­da­mente en­rai­zada nas massas e nas suas as­pi­ra­ções.

A der­rota no Vi­et­name cons­ti­tuiu um rude golpe para o im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, por­ven­tura uma das mais sé­rias que al­guma vez so­freu, for­çando-o a re­frear os seus ím­petos mais vi­o­lentos: a Acta Final da Con­fe­rência de Hel­sín­quia sobre Se­gu­rança e Co­o­pe­ração na Eu­ropa e os acordos de de­sa­nu­vi­a­mento e de­sar­ma­mento ce­le­brados nos anos se­guintes re­sul­taram também dessa que foi uma grande vi­tória das forças da paz, do pro­gresso so­cial e do so­ci­a­lismo.

Ex­pulsos os in­va­sores, con­quis­tada a in­de­pen­dência e a reu­ni­fi­cação da sua pá­tria, os co­mu­nistas e o povo do Vi­et­name par­tiram à cons­trução do seu país – ta­refa que, também essa, se re­velou árdua, dado o grau de atraso a que o co­lo­ni­a­lismo e o im­pe­ri­a­lismo o con­de­naram e a des­truição pro­vo­cada pela guerra. Hoje, meio sé­culo pas­sado após essa grande vi­tória, a Re­pú­blica So­ci­a­lista do Vi­et­name con­tinua a pros­se­guir no ob­jec­tivo de «pro­mover a in­dus­tri­a­li­zação e a mo­der­ni­zação para um povo prós­pero, um país forte e uma so­ci­e­dade justa, de­mo­crá­tica e ci­vi­li­zada».

 

Bru­ta­li­dade sem li­mites

Nunca é fácil pro­ceder à ma­cabra con­ta­bi­li­dade das ví­timas de uma qual­quer guerra, muito menos de uma tão brutal e pro­lon­gada como a do Vi­et­name – en­vol­vendo o com­bate aos mi­li­ta­ristas ja­po­neses, aos co­lo­ni­a­listas fran­ceses e ao im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano e seus fan­to­ches –, que durou mais de três dé­cadas e alas­trou para os vi­zi­nhos Laos e Cam­boja.

Os nú­meros va­riam de acordo com as fontes, mas as au­to­ri­dades vi­et­na­mitas falam em mais de um mi­lhão de mortos e 300 mil de­sa­pa­re­cidos, a que acrescem os 300 mil cam­bo­janos e as de­zenas de mi­lhares de la­o­ci­anos. Há ou­tros nú­meros (uns mais ex­pres­sivos, ou­tros menos), mas todos re­velam a bru­ta­li­dade da guerra im­pe­ri­a­lista im­posta aos povos do Vi­et­name, do Laos e do Cam­boja.

Da parte dos EUA, estão con­ta­bi­li­zados cerca de 58 mil sol­dados mortos.

Mas há mais para lá da frieza dos nú­meros: tes­te­mu­nham a de­su­ma­ni­dade do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano os bom­bar­de­a­mentos aé­reos mas­sivos de ci­dades do Norte do Vi­et­name, mas­sa­cres de po­pu­la­ções, uti­li­zação mas­siva de bombas in­cen­diá­rias de na­palm (a quan­ti­dade de na­palm uti­li­zada no Vi­et­name foi 10 vezes su­pe­rior à usada na Co­reia e quase 20 vezes mais do que na Se­gunda Guerra Mun­dial, contra o Japão) e o re­curso ao des­fo­lhante quí­mico Agente La­ranja, fa­bri­cado por mul­ti­na­ci­o­nais da in­dús­tria quí­mica como a Bayer-Mon­santo e a Dow Che­mical.

Sobre as flo­restas do Sul do Vi­et­name, do Laos e do Cam­boja foram des­pe­jados, entre 1961 e 1971, 76 mi­lhões de li­tros deste pro­duto. Se­gundo a As­so­ci­ação Vi­et­na­mita de Ví­timas do Agente La­ranja, 4,8 mi­lhões de pes­soas foram ex­postas a este quí­mico e ac­tu­al­mente são três mi­lhões os que vivem com as suas con­sequên­cias: di­mi­nuição da imu­ni­dade, dis­túr­bios en­dó­crinos, neu­ro­ló­gicos e re­pro­du­tivos, can­cros e as mal­for­ma­ções, muitas delas graves e par­ti­cu­lar­mente in­ca­pa­ci­tantes. Nin­guém sabe ao certo quantas ge­ra­ções po­derão vir a ser afec­tadas, mas muitos bebés nascem ainda hoje com muitos destes pro­blemas de­vido ao facto dos seus avós ou bi­savós terem sido ex­postos ao Agente La­ranja.

 



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