- Nº 2683 (2025/04/30)

Muita força por pouco dinheiro

Argumentos

Digamos que esta prosa é mais sobre as condições de trabalho e o papel que a canção vem desempenhando, ao longo dos anos, na vivência e na denúncia dessas condições, do protesto contra a exploração do trabalho, do combate às práticas de submissão das classes trabalhadores e sua sujeição aos interesses de quem se instala no alto do seu “quero, posso e mando”.

Há anos largos, o grupo Introito (do qual fiz parte) escreveu e interpretou, logo a seguir ao 25 de Abril, uma canção a que chamou “Cantiga do Trabalho, do Pão, do Dinheiro e do Patrão” (com linguagem datada: «ai camarada o teu suor / é o dinheiro do patrão / é preciso dizer não»), decerto menos conseguida do que a canção do Sérgio, mas seguramente sobre o mesmo tema, o trabalho mal pago e mal tratado.

O papel das canções de e sobre o trabalho assumiu várias formas e intuitos: o de marcar o ritmo de um trabalho que exige movimento repetitivo, o de aliviar o sofrimento sonhando outras condições, o de protesto contra servidões, o de incentivo à luta dos trabalhadores. Por ordem, as canções de trabalho escravo, nomeadamente nos EUA, os espirituais negros, as escritas por cantautores atentos e progressistas, ou as de quem escreveu (e escreve) cantigas que apontam caminhos para melhores condições de vida e defendem ideologias que, na prática, tendem e eliminar a exploração do homem pelo homem.

Nos Estados Unidos, antes de Lincoln e devido a um intenso trabalho missionário, as canções de trabalho dos escravos negros tinham uma forte componente religiosa: «I looked over Jordan and what did I see? (…)/ A band of angels coming after me / coming for to carry me home» (olhei o Jordão e o que é que eu vi? / um bando de anjos atrás de mim / vindo para me levar a casa). A casa: salvação, céu, libertação.

Podemos falar de Bella Ciao, que começou por ser uma canção que as mulheres em trabalho sazonal nos campos cantavam; depois, com a mesma melodia, passou a ser uma canção de protesto contra a I Guerra Mundial e acabou sendo, com nova letra, um símbolo da resistência antifascista italiana. Ou de em ex-Beatle, John Lennon, que foi amadurecendo e chegou a um nível capaz de, para além da soberba canção Imagine, ter escrito e interpretado Working Class Hero (herói da classe trabalhadora), também (e não só) um apelo a que as coisas mudem para quem trabalha. Ou dos históricos Pete Seeger ou Woody Guthrie. Ou de Bob Dylan (Maggie’s Farm, sobre as condições de trabalho dos camponeses).

Em Portugal, antes e logo depois do 25 de Abril de 1974, todas as canções de protesto contra o regime ou, depois, de denúncia de situações que atropelavam as ideias nascidas da Revolução dos Cravos, tinham a classe operária ou as classes trabalhadoras como alvo, por serem as mais afectadas, primeiro pelo fascismo por cá vigente e, mais tarde, pelos que pretendiam (e ainda hoje pretendem) transformar a mudança real numa metamorfose duvidosa.

De José Afonso a José Barata Moura, passando pelo Adriano, o Zé Jorge Letria (que de repente se calou…), o Carlos Mendes, o Tordo (é importante lembrar as letras de Ary dos Santos), a Luísa Basto, o Vitorino, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho ou o Fausto, todos, de formas diferentes e num ponto convergentes (um futuro melhor) cantaram com a classe trabalhadora na base das letras construídas ou na escolha dos acordes necessários.

No Brasil podemos sintetizar essa luta na canção do Chico Buarque Vai Trabalhar Vagabundo. Não há mais espaço para tantos que, nesse país, cantaram pelo progresso e pela luta activa por um futuro melhor para quem trabalha («quem sabe faz a hora, não espera acontecer», Geraldo Vandré, Para Não Dizer Que Não Falei das Flores).

Por estas bandas os que cantavam canções progressistas e revolucionárias faziam-no em colectividades, na Universidade, nos lugares para os quais eram solicitados por sindicatos ou associações de estudantes, antes do 25 de Abril, e nesses lugares e depois também em espaços abertos, em festivais, em recintos que atraiam muita gente que ouvia cantar e cantava com a ousadia e o atrevimento que a Liberdade transporta. O primeiro 1.º de Maio em Liberdade foi o pontapé de saída. A Festa do Avante! foi o grande primeiro passo.

A um nível mais abrangente, A Internacional será, porventura, a mais cantada e a mais célebre canção política e, por razões óbvias, de trabalho. Mas numa escala menor que diz respeito a este lugar chamado Portugal ouvimos ainda, fazendo coro e reconhecendo a sua actualidade, as palavras da canção do Sérgio: «Vi-te a trabalhar o dia inteiro / construindo cidades pr’ós outros / carregar pedras, desperdiçar /muita força por pouco dinheiro». E, sem descurar a luta pelo «direito a condições de trabalho dignas» e, sempre de acordo com a nossa Constituição, sabendo que «todos têm direito a um salário adequado ao seu trabalho», lembramos, com alegria, a canção que Paulo de Carvalho criou (letra de Isabel Baía) para festejar o 1.º de Maio: «Hoje não vais trabalhar porque faz anos que és trabalhador.»

 

Nuno Gomes dos Santos