Depois de Francisco, e agora?

Carlos Gonçalves

As Encíclicas de Francisco, de facto anticapitalistas, são as mais avançadas de sempre

BOGDAM SOLOMENCO


Faleceu o Papa Francisco, que «marcou a Igreja, os católicos e outros cristãos nesta fase da história da humanidade com grande proximidade às causas da paz, de defesa dos direitos económicos e sociais e de justiça para os excluídos desta sociedade “submetida a interesses financeiros”». Agora, importam as referências para o imediato, porque este é o «momento da hipocrisia», em que todos elogiam Francisco e mesmo os que conspiraram para o afastar tentam «moderar o conclave» e reverter, com um novo Papa, a Doutrina Social da Igreja e a luta pela paz.

Francisco, feito Papa em 2013, nasceu Jorge Bergoglio, filho de emigrantes italianos na Argentina. Foi padre, Bispo e Cardeal de Buenos Aires e destacou-se na intervenção popular. Desde o século VIII foi o primeiro Papa não europeu, vindo da América do Sul.

Próximo da Teologia da Libertação (perseguida por Woytila e Ratzinger), o Papa assumiu a urgência da afirmação católica, por antítese com as seitas evangélicas, reaccionárias, neoliberais e fascizantes, exportadas dos USA para o Brasil, Argentina, etc. O seu pontificado, com dificuldades e hesitações, foi de renovação no Vaticano, na hierarquia e no caminho sinodal duma Igreja inclusiva e “de saída”, contra o clericalismo, contra o abuso de menores, de (lenta) progressão de mulheres, ecumenismo e acção contra o neocolonialismo e a guerra.

 

As Encíclicas
As suas Encíclicas de facto anticapitalistas são as mais avançadas de sempre e hoje são o mais essencial da Doutrina Social da Igreja, que baliza a intervenção dos católicos na política e na sociedade.

Na Laudato Si’ (2015), lê-se: «o mercado não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social, (…) o sistema é insustentável, (…) a economia (é) assumida (...) em função do lucro, a finança sufoca a economia real, (…) não melhora a produção (nem) cria postos de trabalho. (...) A proclamação da liberdade económica, enquanto a realidade (a) impede (…) (para) muitos (...) e se reduz o acesso ao trabalho (...) desonra a política. (…) É indispensável (…) o acesso ao trabalho (para todos). (…) A subordinação da propriedade (…) ao destino universal dos bens e (...) o direito (...) ao seu uso é o primeiro princípio (…) ético-social, (…) a tradição cristã nunca reconheceu como intocável o direito à propriedade privada, salientando a (sua) função social. (…) A política não deve submeter-se à economia (que mata). (...) Para uma liberdade económica de que todos beneficiem pode ser necessário pôr limites aos que detêm (…) o poder financeiro.»

Na Fratelli Tutti (2020), o Papa Francisco esclarece que não «se trata apenas (de) melhorar (…) as regras existentes», fala da «exploração» dos trabalhadores e dos povos, dos «poderes económicos transnacionais e do domínio no digital, (…) criando manipulação das consciências e da democracia». Nega o «fim da história» e afirma a defesa dos países e povos face ao mercado – na economia, na net, nas “redes”, na cultura. Assumes propostas (à esquerda) de «boa política» e «nova sociedade», «desenvolvimento humano integral, terra, tecto e trabalho para todos, (…) estruturas sociais alternativas (...) (que) assegurem a cada pessoa (...) contribuir (…) (para o) desenvolvimento do mundo e viver como povo (…). Luta legítima (...) para tirar o poder ao opressor, (…) o povo na sua luta diária, (…) (em) cujos conflitos (…) o cristão deve tomar posição coerente». Aqui chegámos, com este Papa: «transformar o mundo» pela luta, para uma nova organização da sociedade.

 

A paz como direito humano
Francisco, como fez o Vaticano II, deu enorme importância à luta pela paz, rejeitou a reescrita da história, «sem memória nunca se avança», falou das «bombas de Hiroshima e Nagasaki» e das «falsas desculpas» dos que «ganham com a guerra», repetiu centenas de vezes «nunca mais a guerra», «eliminação total das armas nucleares, imperativo moral e humanitário», «Paz, direito humano fundamental».

Sobre a Palestina, as críticas do Papa foram frontais e duras, contra o genocídio sionista, o assassínio de crianças, a fome, a opressão e a guerra, em defesa da Paz e de dois Estados soberanos. Sobre a guerra no leste da Europa, foi o Vaticano que sempre falou de Paz com a Rússia e a Ucrânia. Em 2022, o Papa disse que «o ladrar da NATO às portas da Rússia» levou ao conflito. E nunca desistiu, esteve sempre «na construção da paz e da fraternidade», com os católicos e «todos os seres humanos», convergindo com os crentes progressistas, os democratas e patriotas.

Sem interferir nas suas decisões, temos esperança de que a Igreja Católica se continue a afirmar nos ideais avançados e na luta pela paz. Álvaro Cunhal disse em 1974: «os comunistas defendem boas relações (...) com a Igreja, (...) que mostra uma evolução positiva. Confiamos em que os homens mais esclarecidos (...) compreendam a sinceridade e as profundas implicações, para o presente e o futuro, desta posição.»

 



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