Monotemas e responsabilidades
Imaginemos a seguinte caricatura: existia um grupo de comunicação social que detinha uma estação de televisão e um jornal. Nos últimos dias de uma campanha eleitoral, como é hábito, um responsável editorial desse jornal foi chamado à antena da televisão do mesmo grupo para comentar o dia de campanha.
Começa por dizer que «as televisões têm uma responsabilidade social enorme», prosseguindo com uma violenta crítica a ter-se passado «50% do tempo a discutir porque é que um dirigente partidário foi parar ao hospital ou não». Pelo meio é interrompido pela pivô para seguir em directo para a porta do tal hospital de onde a equipa de reportagem para lá destacada dava conta de que não havia qualquer novidade, nenhum dado novo, nenhuma declaração sobre o que quer que seja. A pivô, nervosamente assumindo-se como a voz do chefe, tentou desculpar a opção dizendo que a dificuldade em televisão é que as decisões são tomadas no momento: «não dá tempo para pensar.»
Agora experimentem pôr nomes neste relato: o grupo chama-se Impresa, o jornal é o Expresso e a estação de televisão é a SIC. Tudo isto aconteceu a pouco mais de dois dias das últimas eleições legislativas e é um espelho fiel do que foram esses últimos dias de campanha nas emissões televisivas. Para lá dos lamentos, a verdade é que assistimos a horas de emissão contínua monotemática nos canais de informação, na fase derradeira da campanha eleitoral, em que uma força política foi mais uma vez transformada no centro do debate político – com a agravante de, desta vez, as televisões se terem demitido de forma absoluta da tal «responsabilidade social enorme».
Não se tratou apenas de dar total centralidade a uma candidatura, mas de o fazer sem que isso tenha sido acompanhado de qualquer escrutínio jornalístico sobre a sua campanha, a sua conduta ou as suas propostas, contaminando o tratamento mediático de quase todas as restantes campanhas eleitorais (por vontade dos próprios ou por decisão editorial), com a excepção assinalável da CDU – sendo de registar a conduta dos profissionais que a acompanharam, que não contribuíram para isso. No fim de contas, tudo isto só foi possível por decisão deliberada de quem determina os alinhamentos televisivos. Alguém decidiu empenhar meios na perseguição de ambulâncias e em horas sem fim de imagens à porta de unidades de saúde onde nada acontecia.
Alguém decidiu colocar no ar essas imagens. Os lamentos, como o que se descreve (e que esteve muito longe de ser o único), por mais sentidos que sejam, não escondem a realidade: a comunicação social dominante continua sem se desviar do caminho de demissão da tal «responsabilidade social» e, como se vai ouvindo de muitos profissionais do sector, escreveu nestes últimos dias algumas das páginas mais negras da sua história no Portugal de Abril.