Tudo-Está-Ligado, de Pepetela
Pepetela parte neste Tudo-Está-Ligado, em busca dos povos ancestrais de Angola e da formação dos reinos no Planalto Central
«a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem, no entanto, e eu sou um deles.» Escreveu Pepetela em Mayombe, um dos mais importantes textos sobre a Guerra Colonial.
Penso que desde esse seu título, que o tornou conhecido e reconhecido nos meios literários da lusofonia – o livro foi distinguido com o Prémio Nacional de Literatura de Angola -, Pepetela em todos os seus romances não deixou de procurar, no meio das areias movediças que constituem o nosso mundo mediático e político, esse caminho no deserto que leve ao encontro da verdade, mesmo que da verdade possível num universo em que o lixo mediático e a mentira, como sistema, começam a sufocar-nos e a tornar quase impraticável o convívio leal e limpo entre os povos.
Quase todos os livros de Pepetela (pseudónimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em Benguela, em 1941), perseguem esse desiderato, essa busca da verdade sobre a sua Angola e a diversidade dos povos que a constituem, quer no período colonial, quer após a independência, com a longa e fratricida guerra civil que se lhe seguiu, quer ainda sobre o mandato de José Eduardo dos Santos, que estabeleceu a paz e começou a consolidar um país devastado por guerras longas e com muitas feridas abertas no tecido social, nesse percurso.
Cabe ao escritor lúcido e consciente do tempo histórico que lhe coube viver, como tarefa primordial, em contextos sociais complexos, encontrar o fio da meada que os poderes tecem - as traições, os desvios, as cedências a um inicial e generoso projecto comum -, e encetar essa tarefa de vigília e denúncia de uma práxis que se afastou das suas justas premissas e da ideologia que lhe estava no âmago, fazendo-o sem temores, com os mecanismos, a lisura, a sageza que uma obra de ficção obriga.
Por vezes o autor de O Cão e os Caluandas, é violentamente mordaz nas críticas subliminares que os seus livros expõem, face à realidade pós-colonial do seu país e os ideais que convocaram os seus contemporâneos à revolta, permitindo que Angola se tornasse um país independente. Nos livros recentes do autor, a denúncia e a crítica transfigura-se, expressa-se menos envolvida em discurso apodítico, tornando-se mais lata e eficaz através de um humor inteligente, de subtil ironia, que perpassa a narrativa, na qual a abordagem dos abusos do poder, o nepotismo e a corrosão dos princípios democráticos, nos são descritos com notável vigor expressivo e satírico, que é marca estética da prosa desenvolta de Pepetela. Encontramos esse discurso nos romances em que a personagem é um delirante inspector da Polícia Judiciária, de nome Jaime Bunda e nesse pícaro romance que é Sua Excelência, de Corpo Presente.
Tendo como base antropológica o livro de Mesquitela Lima, Os Kyaka de Angola (Edições Távola Redonda/1988), – Pepetela já havia referido, no romance O Planalto e a Estepe, algumas passagens ligadas à história desta região angolana -, numa fascinante viagem pelas gentes e pelas paisagens dessa região, tendo por protagonista o major Santiago e as suas memórias, o qual, cansado de guerras e após um acidente que o leva a reforma antecipada, se refugia na casa dos seus antepassados, em Benguela, aí, tendo por companhia o cão Jeremias e o gato Zacarias, rememora as suas origens familiares, que remontam ao início do reino Tchiyaka, convive com velhos companheiros de percurso, reflecte sobre o tempo colonial e as duas guerras em que participou, a primeira contra a administração portuguesa, a segunda, na guerra civil que se iniciou logo após a proclamação da independência por Agostinho Neto, em Novembro de 1975, e a actual realidade do país.
Mas é quando conhece a bela e fogosa Ofeka, que a vida pacata do major Santiago se irá transformar. Ofeka conhece os feitiços, as premonições, as profecias dos vários povos do Planalto Central, esse conhecimento, ligado ao kazumbi Olegário, irá permitir a ambos, Ofeka e Santiago, penetrar nas margens das seculares tradições angolanas, dos mitos e do fantástico, e irem à descoberta de um país outro, da sua intrínseca verdade histórica, país mágico, resistente e insubmisso.
A prosa de Pepetela, convive com um português solto, límpido, descomplexado, pontuado por termos das línguas nativas e de um remoçado calão urbano, matéria substantiva que se conjuga para nos oferecer um dos seus mais abrangentes e brilhantes títulos.
Tudo-Está-Ligado, de Pepetela – Edição D. Quixote/2025