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Bailes

CINEMA   • Rogério Feitor


Todo o texto é baseado nos filmes e personagens de John Ford. Por isso mesmo nada mais é do que um elogio a este velho mestre e às pessoas que ele representou nos seus filmes. Que somos todos nós.

Imagine-se John Wayne. Alto e majestoso, um cowboy sempre solitário que não receava sacar das suas pistolas para resolver assuntos onde palavras já não teriam peso algum. Por vezes, não querendo marcar a ferro e fogo os seus adversários, recorria aos punhos para os acalmar. Firme e justo, poucas vezes perdia ele a calma, e, quando isso acontecia, uma explosão de chamas queimava o écran e a todos nós.

Observe-se agora James Stewart. Não tão violento quanto Wayne, pelo menos a um nível físico, a sua figura esguia e luminosa marcava verticalmente as telas do cinema na época. Sempre atento aos tempos e modas, apelava para o retorno à lei da palavra como figura solucionadora das injustiças e crises no tempo dos Westerns. E nunca matou Liberty Valance, apesar dessa lenda ainda correr por aí.

Finalmente, o ícone maior: Henry Fonda. Dele o próprio mestre disse que o seu andar era o Cinema. Alto, mas não tão alto quanto Wayne e Stewart, magro e duro, não hesita em juntar às palavras a brusquidão dos seus golpes. Calmo, escuta sempre primeiro antes de executar alguma coisa. E apenas dá a sua opinião quando a todos escutou.

Alguma ligação entre estes três? Uma imensa: a certeza. A certeza de uma vida demasiado efémera para ser desperdiçada, a certeza da vitória da justiça humana, a certeza no carácter humano, uma certeza tão forte que os leva mais longe, sempre buscando dúvidas para atingirem o fim da certeza: a vida em toda a sua plenitude. Todos homens. Todos os homens.

A mulher

Para ela não há actrizes nem tercetos. A mulher é uma só.

Normalmente chega de uma viagem, com o pai ou mesmo sozinha. Elegante e bela, fala com um tom calmo, não segura mas certa de encontrar ouvidos que devidamente sintam o mesmo que ela. Lentamente, tenta mudar o carácter bruto daqueles que a rodeiam, excepto quando encontra alguém esculpido em ferro ou pedra. Aí apaixona-se, passando ela a ter certezas e ele dúvidas.

Por vezes vítima, outras vezes apenas companheira, mas sempre diferente de todas as outras mulheres. Uma das vezes inexistente como amante mas certa como mãe. Aliás, foi mais do que uma vez.

O baile

Com Wayne sempre foram encontros violentos. E por isso mesmo inesquecíveis. Firme, abraça a sua mulher e obriga-a (apesar de nunca a termos ouvido dizer que tinha sido obrigada) a dançar, por vezes até a casar com ele. Ela, excitada com o seu amor tímido e violento, deixa que ele a rodeie com o seu braço. Wayne tem a certeza, ela a beleza. E só uma vez não foi ele bem sucedido.

Stewart tem o dom da palavra e da sinceridade. Ela, encantada com a sua beleza e justiça, deixa-se levar. Com Stewart é um compromisso firme e seguro. Ela nunca o abandonará apesar de não ter ainda as certezas dele. Mas de uma coisa está certa: ele provará a todos que tem razão, mesmo quando à verdade prefere a lenda.

Com Fonda tudo é inesquecível. Criança-homem, veste o seu fato de domingo, o seu único fato, para a levar ao mais surreal, logo inesquecível baile já visto no Cinema (todo o surrealismo é uma constante luta contra o esquecimento). Numa igreja semi-construída, Fonda leva-a a dançar de manhã. Ela finalmente está segura e certa com Fonda. E assim tem um nome: a querida Clementine. E Fonda, quando se despede dela, sabe que ela para sempre o vai esperar. É ela a sua certeza não concretizada, é ela a sua dúvida eterna, a sua vida.

E quando nenhuma amante surge no seu caminho, eis a mãe, entidade terrena que sabe não poder substituir uma amante, mas que tem a certeza firme de ser insubstituível. Por fim reúnem-se todos no baile: os três com uma única mulher, dançando por turnos e esperando impacientemente a sua vez. Os três? No fim, como num sonho, só me vejo a mim, a dançar, com a minha querida Clementine. E disso tenho a certeza.

«Avante!» Nº 1428 - 12.Abril.2001