Clausura, silêncio e resistência – o universo poético de Luís Veiga Leitão

Domingos Lobo

A crer em al­gumas bi­o­gra­fias pu­bli­cadas sobre Luís Veiga Leitão, o autor de La­ti­tude nasceu em Moi­menta da Beira a 27 de Maio de 1912 (razão pela qual se co­me­mora no ano em curso 100 anos do seu nas­ci­mento), vindo a fa­lecer em Ni­terói, no Brasil, a 9 de Ou­tubro de 1987.

«au bout du cha­grin une fe­nêtre ou­verte/​une fe­nêtre éclairé» – Paul Éluard

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Óscar Lopes, le­vado cer­ta­mente por equi­vocas in­for­ma­ções, que che­garam igual­mente ao autor deste texto, situa, na His­tória da Li­te­ra­tura Por­tu­guesa, Luís Maria Leitão (nome pró­prio, su­pri­mindo o autor de Noite de Pedra o Maria, a que acres­cen­taria Veiga, cons­truindo, dessa forma, um com­pro­misso entre o nome pró­prio e o pseu­dó­nimo com que as­si­naria toda a sua obra li­te­rária) como tendo nas­cido em 1915.1 O equí­voco é ir­re­le­vante, dado que todos os pre­textos nos ser­vi­riam para a ela­bo­ração deste texto, o qual não pre­tende outra coisa do que evocar e trazer de novo ao nosso con­vívio uma das vozes poé­ticas mais im­por­tantes e in­flu­entes da nossa li­te­ra­tura na se­gunda me­tade do sé­culo XX.

1. So­lidão, de­núncia e re­sis­tência

Pode ser-se poeta, um so­nhador de li­ber­dades, fe­chado nas mas­morras do fas­cismo? É pos­sível cons­truir, com a vo­látil ar­ga­massa das pa­la­vras, um país outro, apenas in­ven­tado, livre e li­berto? Foi pos­sível sair, mesmo que por ins­tantes breves e su­premos, dessa Noite de pedra/​Cer­ração de muros/​arames far­pados/​grades de ferro/​cruzes de ferro/​nas campas rasas/​de uma luz morta e ul­tra­passar, com as pa­la­vras ver­tidas na me­mória, os medos e os muros, essa Noite de pedra noite for­jada/– ​para que o si­lêncio es­mague/​o co­ração dos ho­mens2 e dessa noite sair para se juntar às vozes de ou­tros ho­mens e re­sistir à re­a­li­dade opres­siva dos dias ig­naros? Foi pos­sível, não apenas ao poeta Luís Veiga Leitão, mas a ou­tros seus com­pa­nheiros de luta, de com­bate e de versos, viver e de­nun­ciar a re­a­li­dade po­lí­tico-so­cial desses dias, mesmo no si­lêncio iso­lado das celas, mesmo com o co­ração es­ma­gado de si­lêncio, mesmo se as fer­ra­mentas de tecer as pa­la­vras lhe eram, pelos ver­dugos, ne­gadas: Ca­neta, lápis, papel/​e lâ­mina de ponta de lua/​um au­tó­mato do bolso me ti­rava.../​De­pois a minha mão ficou nua/​da ves­ti­menta que usava./ Mas deram-me uma tinta preta/(​nuvem negra de um fogo posto)/​e me­teram-me no tin­teiro.../​Na tinta, afogo as mãos, o rosto,/​o meu corpo in­teiro:/​A força, o canto, a voz que en­cerra,/​nin­guém, nin­guém pode afogar/– ​como as raízes da terra/ e o fundo do mar.3 E o poeta re­sistiu ao si­lêncio e foi pre­en­chendo o vazio com o fogo das pa­la­vras, in­ven­tando no frio raso das pe­dras esse húmus, esse chão de lava in­frene que há para além dos muros, que existe al­gures e pelo qual vale a pena cerrar os lá­bios e, co­ra­jo­sa­mente, er­guer a fronte, mesmo na es­cu­ridão de uma cela, esse Ventre vazio de um porão/​na so­lidão de charco4 e negar a vi­o­lência, res­ponder às se­ví­cias com a força das pa­la­vras e da razão, im­pedir que a in­jus­tiça e a de­su­ma­ni­dade de uns quantos con­tagie o hu­mano que freme no corpo ma­ce­rado e, apesar disso, in­ventar a es­pe­rança pos­sível para além das grades e das se­ví­cias: Não. Digo à ex­plosão de ameaça/​e à ra­pada pai­sagem do des­terro./​E não. Digo à minha car­caça/​en­ca­lhada em bancos de ferro/​e ao cor­dame dos nervos, fus­ti­gado,/​a ranger no si­lêncio a sós:/​Por cada nervo que­brado/​que se in­ventem mais nós.5

A po­esia é um acto de cri­ação so­li­tário, de si­lên­cios, de de­bate ín­timo e de ín­timas in­ter­ro­ga­ções, no sen­tido bre­ch­tiano, numa ten­ta­tiva de re­con­duzir, de levar como ar­chote, o pen­sa­mento cri­a­tivo e crí­tico ao que Marx en­tendia ser o homem total. A po­esia neo-re­a­lista faz-se de re­fle­xões sobre o real e da sua trans­po­sição, através do poema, para o outro, para o de­bate livre e li­berto, como o en­tendia Rim­baud, que di­a­léc­tica e pre­fe­ren­ci­al­mente se de­verá es­ta­be­lecer com os lei­tores. Ora, o si­lêncio de mor­daça que a po­esia de Luís Veiga Leitão vei­cula é um si­lêncio cons­tran­gido, im­posto pelas cir­cuns­tân­cias po­lí­tico-so­ciais em que a mesma se cons­titui: o poeta so­freu, e dessa ex­pe­ri­ência se fez eco, a clau­sura e o ar­bí­trio e é essa re­a­li­dade, esse ob­jecto do si­lêncio, que mol­dará a dis­po­sição da ma­téria poé­tica. A so­lidão e o si­lêncio do acto cri­a­tivo não foram, nos textos que cons­ti­tuem o corpo de Noite de Pedra, livre ar­bí­trio do autor, mas uma cir­cuns­tância im­posta pela força e ex­te­rior à von­tade do poeta. E a voz, assim vi­o­len­tada, emerge do si­lêncio com a cum­pli­ci­dade ac­tiva da me­mória e faz-se grito, de­núncia e arma na ânsia de in­ventar, através dos muros e do es­curo da cela, o que não vê (o dia que há lá fora), uti­li­zando a ironia, de uma forma que é a um tempo re­belde e dra­má­tica, para so­bre­levar o trá­gico: Bom dia. Diz-me um guarda./​Eu não ouço... apenas olho/​das chaves o grande molho/​pa­rindo um riso na farda./ (...) Vó­mito in­su­por­tável de ironia/​Bom dia, porquê bom dia? (...) Olhe, se­nhor guarda/(​no fundo a minha boca rugia) aqui é noite, nin­guém mora,/​deite esse grito lá fora/​porque lá fora é que é dia!6

Se a po­esia de Luís Veiga Leitão se ex­pressa pela de­núncia do sis­tema e da sua vi­o­lência, mesmo quando a uti­li­zação da me­tá­fora tenta su­a­vizar a cla­reza do dis­curso, não deixa de conter os ele­mentos sin­cró­nicos que des­montam a re­tó­rica ofi­cial «dos brandos cos­tumes», im­pli­cando no corpo fa­bular e ex­pres­sivo do poema os pres­su­postos ide­o­ló­gicos, ex­pondo-os e in­te­grando-os nas li­nhas ge­rais e con­fli­tuais do seu tempo, e da cir­cuns­tância de se achar preso po­lí­tico nas mas­morras do fas­cismo: Lá, na úl­tima das celas/​nódoa negra de açoites,/​não há dias, não há noites/​porque as noites têm es­trelas (...) Lá, só há sombra que dói./​Sombra e bran­cura de um osso/​que o preso remói, remói/​no fundo do seu poço. (…) Lá, quando o vi­erem buscar/​amanhã, de­pois ou logo,/​terá na alma mais um fogo,/​mais uma chama no olhar.7 O si­lêncio, a so­lidão do cár­cere e as se­ví­cias não im­pedem o poeta de so­nhar para lá dos muros e das es­trelas dessa noite imensa re­co­lher a luz, a chama que há-de in­cen­diar o ca­minho dos ho­mens li­vres.

Ra­ra­mente a po­esia por­tu­guesa da re­sis­tência atingiu um grau de ma­tu­ri­dade ex­pres­siva, um lugar tão alto de amar­gura lú­cida, de de­mo­li­dora sa­ga­ci­dade nos termos em que nos re­vela a di­mensão dos crimes da di­ta­dura, como a que Luís Veiga Leitão con­segue nesse livro mo­delar – mo­delar na forma como des­creve o nojo, como nos diz do horror desses anos de vida re­pre­sada e o faz com ex­tremo rigor se­mân­tico, o verbo des­po­jado, a au­sência de re­tó­rica da vi­ti­mi­zação e um co­me­di­mento emo­ci­onal, um quase pudor dos ex­cessos, que apro­xima esta fala da so­bri­e­dade es­té­tica de um Carlos de Oli­veira. A suave ironia, que rasa o corpo tex­tual de al­guns po­emas li­ber­tando-os, numa como que dis­tan­ci­ação bre­ch­tiana, da sua carga dra­má­tica (pro­cesso já des­co­berto no livro La­ti­tude), fazem desta arte poé­tica um dos mo­mentos su­per­la­tivos do neo-re­a­lismo e da nossa mo­der­ni­dade li­te­rária, quer no plano da lin­guagem, quer na ex­pressão épica que os po­emas de Noite de Pe­dras im­pli­ci­ta­mente contêm, ex­pondo a re­volta e a an­gústia in­di­vi­duais e trans­por­tando-os para o vasto ter­ri­tório do eu so­cial e da cons­ci­ência co­lec­tiva. O poema In­ter­ro­ga­tório, é dessa con­tenção ex­po­si­tiva, desse pro­cesso ofi­cinal, mesmo na dis­po­sição es­tró­fica uti­li­zada, e da pos­tura cí­vica que o autor, através do poema, ex­pressa, pa­ra­dig­má­tico exemplo:

Fala! A Dor lhe grita (im­puro
seu grito branco que de rastos medra)
Nunca. Quero que­brar de corpo duro
como as es­tá­tuas de pedra.
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Temos, deste modo, uma po­esia que, re­ve­lando a sin­gu­la­ri­dade de uma ex­pe­ri­ência in­di­vi­dual (o cár­cere, a tor­tura, o iso­la­mento, a so­lidão e o si­lêncio) trans­porta para o poema – logo, para uma to­mada de cons­ci­ência co­lec­tiva que a de­so­cul­tação da vi­o­lência im­plica – um ético sen­tido da exis­tência e do com­bate: não era apenas o poeta que so­fria na pele as atro­ci­dades, as amar­guras do cár­cere era igual­mente, mesmo que as não vi­vesse na re­a­li­dade da Cela 13, todo um povo.

Mesmo no trá­gico da prisão, o poeta re­siste e sabe que re­sis­tindo se li­berta e nos li­berta, mesmo que essa li­ber­dade, as vi­a­gens para lá dos muros, seja vir­tual, apenas ima­gi­nada no sim­bo­lismo de uma bi­ci­cleta de­se­nhada na cela: Nesta pa­rede que me veste/​da ca­beça aos pés, in­teira,/​bem hajas com­pa­nheira,/​as vi­a­gens que me deste. (...) Aqui,/​onde o dia é mal nas­cido,/​ja­mais me cansou/​o rumo que deixou/​o lápis proi­bido... (...) Bem haja a mão que te criou! (...) Olhos mon­tados no teu selim/​pe­dalei, atra­vessei/​e vi­ajei/​para além de mim.9

2. No­tí­cias do blo­queio e in­fluên­cias

O per­curso poé­tico de Luís Veiga Leitão, que se es­treia em 1950 com o livro La­ti­tude, ins­creve-se, no seu mais con­ciso corpo fa­bular, nas de­ter­mi­nantes es­té­tico-ide­o­ló­gicas do neo-re­a­lismo, mas co­meça a de­nun­ciar, logo em 1953, ano da pu­bli­cação de Noite de Pedra, mas, so­bre­tudo a partir de 1957 nos po­emas pu­bli­cados em «No­tí­cias do Blo­queio» (1957/​1962), a in­fluência que o sur­re­a­lismo im­pri­miria ao corpo dis­cur­sivo e ao ima­gi­nário sim­bó­lico dos seus textos, bem como aos po­emas do grupo de au­tores que se or­ga­nizam e pu­blicam nas pá­ginas dessa im­por­tante re­vista: Egito Gon­çalves, Luís Veiga Leitão, Da­niel Fi­lipe, Pa­pi­niano Carlos e An­tónio Re­bordão Na­varro. A in­tro­dução do oní­rico na cons­trução ima­gé­tica, a mais ampla e ágil apli­cação da lin­guagem, per­mitiu a esta ge­ração, que se re­vela já no pós-guerra (1950/​60), cons­truir um dis­curso mais afir­ma­tivo e crí­tico, ca­rac­te­ri­zado por com­po­nentes me­ta­fó­ricas que abria os ho­ri­zontes con­cep­tuais e tor­nava mais exi­gentes os sig­ni­fi­cados da de­núncia. A este grupo de au­tores po­de­remos juntar, pela ca­rac­te­ri­zação emo­tiva, lí­rica e in­qui­ri­dora que a sua poé­tica in­troduz na ob­ser­vação e con­fi­gu­ração do real, o poeta Ar­mindo Ro­dri­gues, mor­mente pela in­fluência que a sua acção dou­tri­nária e edi­to­rial, com a cri­ação da re­vista «Can­ci­o­neiro Geral», veio im­primir à li­te­ra­tura por­tu­guesa, à sua con­cep­tu­a­li­zação e mo­der­ni­dade, na se­gunda me­tade do sé­culo XX – e, na­tu­ral­mente, José Gomes Fer­reira, a cuja poé­tica não são alheios os traços sur­re­a­li­zantes que im­plica a sua vi­ta­li­dade dis­cur­siva.

O que de ino­vador res­salta em po­etas como Luís Veiga Leitão, Egito Gon­çalves e Da­niel Fi­lipe, é a sua ca­pa­ci­dade de con­fi­gurar um dis­curso me­ta­fó­rico e in­ter­ventor de am­plas res­so­nân­cias, que im­primia ao te­cido verbal do poema uma uni­dade ima­gi­na­tiva que va­lo­ri­zava a lin­guagem e os modos tran­si­tivos de re­flectir e, so­bre­tudo, de afrontar a re­a­li­dade, cri­ando os si­nais re­pre­sen­ta­tivos da sub­versão face à en­vol­vente opres­siva, não he­si­tando no con­fronto, na agi­tação quase pro­vo­ca­tória que os seus textos, no­me­a­da­mente os pu­bli­cados nas pá­ginas da re­vista «No­tí­cias do Blo­queio» (Egito Gon­çalves e Luís Veiga Leitão, so­bre­tudo) e no longo poema A In­venção do Amor, de Da­niel Fi­lipe, im­pli­ci­ta­mente con­ti­nham, res­ga­tando a ob­jec­ti­vi­dade e a di­nâ­mica dos sig­ni­fi­cantes que os es­tru­tura, apro­xi­mando, pelos aflu­entes in­ter­tex­tuais, pelo pro­cesso co­lo­quial e dra­má­tico da sua tex­tura, da lin­guagem te­a­tral e da ficção (com­po­nentes que vamos en­con­trar, igual­mente, na po­esia de Fer­nando Na­mora).

A esta ino­vação formal, a uti­li­zação mais plás­tica da lin­guagem no pro­cesso cri­a­tivo, não seria alheia a in­fluência que al­guns po­etas do com­pro­misso so­cial, como os es­pa­nhóis Juan Ramón Ji­ménez, Lorca e An­tónio Ma­chado, o bra­si­leiro Carlos Dru­mond de An­drade e o francês Paul Éluard, exer­ceram sobre os uni­versos con­cep­tuais dos po­etas de «No­tí­cias do Blo­queio» e dos po­etas neo-re­a­listas em geral. Con­si­dero, como Tristan Tzara (autor que se afastou do da­daismo para se apro­ximar das cor­rentes es­té­tico-ide­o­ló­gicas do mar­xismo), que o es­critor deve «estar mer­gu­lhado até ao pes­coço na His­tória» de modo a que possa «con­tri­buir, na li­ber­dade total da sua acção, para o ad­vento do homem so­cial» e co­mungo da pre­missa ad­vo­gada por Ma­nuel da Fon­seca se­gundo a qual «o apa­re­ci­mento de um es­critor sem in­fluên­cias, é anti-di­a­léc­tico por na­tu­reza».

Apro­vei­tando esta su­per­fície verbal, que a ima­gé­tica sur­re­a­lista per­mitiu in­tro­duzir no dis­curso neo-re­a­lista, e movê-la no sen­tido de tornar mais abran­gente a per­su­asão da crí­tica so­cial, con­si­de­rando nesse plano da in­ter­venção li­te­rária à lin­guagem não só o papel que ela de­sem­pe­nhava como su­porte de re­flexão mas também a função cons­ti­tui­dora que teria re­la­ti­va­mente aos seres e aos va­lores,10 im­pli­cando esses re­cursos nos su­portes teó­ricos e na par­ti­cu­la­ri­dade da luta po­lí­tica e so­cial então vi­vida entre nós, e da qual, como sa­bemos, os au­tores aqui re­fe­ridos não se alhe­aram e da qual foram, em muitos e hon­rosos casos, parte ac­tiva.

Para além da sua obra poé­tica e de cró­nicas de vi­a­gens (La­ti­tude, 1950; Noite de Pedra, 1955; Livro de Andar e Ver, 1978; Li­nhas do Tró­pico, 1977; Livro da Paixão, 1986 e Rosto por Dentro, 1992) e das an­to­lo­gias Ciclo de Pe­dras, 1964 (que reúne os seus li­vros La­ti­tude, Noite de Pedra e Dis­persos), Longo Ca­minho Breve, 1983 e Bi­o­grafia Pé­trea, 1989, Luís Veiga Leitão foi ainda um re­co­nhe­cido ar­tista plás­tico. No plano pro­fis­si­onal, exerceu as fun­ções de es­cri­tu­rário na Fe­de­ração dos Vi­ni­cul­tores da Re­gião do Douro, função de que seria de­mi­tido face à sua mi­li­tância an­ti­fas­cista, sendo essa po­sição cí­vica que o le­varia às pri­sões sa­la­za­ristas e, mais tarde, ao exílio.

Luís Veiga Leitão emerge nestes dias, nestes obs­cenos tempos que vi­vemos, nesta Eu­ropa da usura e da des­ver­gonha, face à bar­bárie que se in­sinua mos­trando as garras bes­tiais por de­baixo do verniz das cir­cuns­tân­cias, como uma voz ne­ces­sária e a re­cu­perar, uma voz que soube dizer, de forma sin­gular, o de­sen­canto e a força, a re­volta e a ale­gria de estar vivo e es­crever sol mesmo quando as grades e as pe­dras co­avam toda a luz; que soube dizer o sonho, a so­li­da­ri­e­dade, o fu­turo e soube con­verter em pa­la­vras a li­ber­dade de cantar/​à flor do chão. Esta voz traz ainda, como a de Da­niel Fi­lipe de A In­venção do Amor, os con­tornos pe­renes do edi­fício que nos mantém vivos e atentos, porque um grito de es­pe­rança in­con­se­quente vem/​do fundo da noite en­volver a ci­dade, e esse ofício de de­molir a noite pros­se­guirá sempre en­quanto o Homem acre­ditar que é pos­sível re­plantar a voz nas pe­dras:

RIO HOMEM

Aqui o rio é Homem
homem da raça de Orfeu:
Seu ofício noite e dia
é re­plantar a voz nas pe­dras
no osso nas raízes que o cercam

- para que a be­leza e a re­beldia
não se percam 11

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 Bi­bli­o­grafia prin­cipal:

Ciclo de Pe­dras, de Luís Veiga Leitão – Por­tu­gália Edi­tora

So­nhar a Terra Livre e In­sub­missa

A In­venção do Amor, de Da­niel Fi­lipe

O Neo-re­a­lismo Li­te­rário Por­tu­guês, de Ale­xandre Pi­nheiro Torres Mo­raes

Re­vista Nova Sín­tese n.º 5 – Ed. Co­libri

In­ci­sões Oblí­quas, de An­tónio Ramos Rosa – Ed. Ca­minho

A Po­esia Por­tu­guesa Con­tem­po­rânea e o Fim do Mo­der­nismo, de Fer­nando Gui­ma­rães – Ed. Ca­minho

His­tória da Li­te­ra­tura Por­tu­guesa, de Óscar Lopes e An­tónio José Sa­raiva – Porto Edi­tora

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1 His­tória da Li­te­ra­tura Por­tu­guesa, de Óscar Lopes e An­tónio José Sa­raiva, p.1155, 8ª. Edição, Porto Edi­tora, Porto 1975

2 Noite de Pedra, poema de Luís Veiga Leitão, in Ciclo de Pe­dras, p.37, Lisboa 1964, Por­tu­gália Edi­tora

3 idem, poema In­co­mu­ni­ca­bi­li­dade, p.38/​39

4 idem, poema Cela 13, p.40

5 idem, poema Re­sis­tência, p.41

6 idem, poema Manhã, p.47

7 idem, poema Se­gredo, p.43

8 idem, poema In­ter­ro­ga­tório, p.42

9 idem, poema Uma Bi­ci­cleta De­se­nhada na Cela, p.64

10 Fer­nando Gui­ma­rães, A Po­esia Por­tu­guesa Con­tem­po­rânea e o fim da Mo­der­ni­dade, p.31, Ed. Ca­minho, Lisboa 1989.

11 Luís Veiga Leitão, Ciclo de Pe­dras, p.99, Por­tu­gália Edi­tora, Lisboa 1964