António Dias Lourenço nasceu há 100 anos

Um homem feliz na luta

Gustavo Carneiro

Nas­cido a 25 de Março de 1915, em Vila Franca de Xira, An­tónio Dias Lou­renço foi um des­ta­cado mi­li­tante e di­ri­gente co­mu­nista du­rante quase 80 anos, nos quais deu provas de uma in­que­bran­tável de­di­cação aos tra­ba­lha­dores, ao povo e à luta do seu Par­tido. A opção, que ainda jovem tomou, de se tornar fun­ci­o­nário do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês pagou-a com bru­tais tor­turas e 17 longos anos de prisão. Tal não o im­pediu, na úl­tima en­tre­vista con­ce­dida ao Avante!, de se con­fessar um homem feliz, so­bre­tudo por ver tanta gente nova a pros­se­guir o com­bate a que de­dicou a sua vida.

A co­ragem e a energia ines­go­tá­veis eram ca­rac­te­rís­ticas mar­cantes da per­so­na­li­dade de Dias Lou­renço

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Ope­rário, jor­na­lista, di­ri­gente po­lí­tico, pri­si­o­neiro, es­critor, de­pu­tado. An­tónio Dias Lou­renço foi tudo isto e muito mais ao longo da sua in­tensa vida (e longa de 95 anos), que desde muito cedo se con­funde com a luta dos tra­ba­lha­dores e do povo contra o fas­cismo e a ex­plo­ração, pela li­ber­dade, a de­mo­cracia e o so­ci­a­lismo. Uma luta a que de­di­caria o me­lhor das suas ca­pa­ci­dades e a sua imensa energia.

Pra­ti­ca­mente até ao úl­timo dia da sua vida (fa­leceu em Agosto de 2010) foi pre­sença quase diária na sede na­ci­onal do Par­tido e na re­dacção do Avante!, onde con­ser­vava uma mesa de tra­balho com um apa­relho que lhe per­mitia ler, apesar das graves li­mi­ta­ções de visão que o acom­pa­nharam nos úl­timos anos. Eram raras as ini­ci­a­tivas do Par­tido ou as ac­ções de luta uni­tá­rias, em Lisboa, nas quais não com­pa­recia, pese em­bora as vi­sí­veis di­fi­cul­dades em andar que se agra­vavam com o passar do tempo. Esta energia, esta força imensa com que tei­mava em con­tra­riar as ad­ver­si­dades da vida e as vi­cis­si­tudes da idade eram pre­ci­sa­mente das ca­rac­te­rís­ticas mais sa­li­entes da fas­ci­nante per­so­na­li­dade de An­tónio Dias Lou­renço.

Como muitos vi­la­fran­quenses da sua ge­ração – os «ho­mens que nunca foram me­ninos» de que fa­lava So­eiro Pe­reira Gomes –, Dias Lou­renço co­meçou a tra­ba­lhar com apenas 13 anos, pouco mais era do que uma cri­ança: du­rante quase uma dé­cada e meia foi tor­neiro-fre­zador nas Ofi­cinas Ge­rais de Ma­te­rial Ae­ro­náu­tico e na Soda Póvoa. O am­bi­ente das fá­bricas e das co­lec­ti­vi­dades, onde de­sen­volveu uma in­tensa ac­ti­vi­dade cul­tural, levam-no à luta dos tra­ba­lha­dores e ao Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês, do qual se torna mi­li­tante em 1931. Três anos de­pois, par­ti­cipa ac­ti­va­mente na jor­nada de 18 de Ja­neiro de 1934 contra a fas­ci­zação dos sin­di­catos.

Na sua pri­meira dé­cada de mi­li­tância co­mu­nista, e ao mesmo tempo que co­la­bo­rava em jor­nais como O Diabo, o Sol Nas­cente, o Men­sa­geiro do Ri­ba­tejo e o Re­pú­blica, as­sumiu um papel des­ta­cado no de­sen­vol­vi­mento da or­ga­ni­zação par­ti­dária. In­te­grou o Co­mité Local de Vila Franca de Xira e o Co­mité Re­gi­onal do Ri­ba­tejo, do qual chegou a ser res­pon­sável. O nome de An­tónio Dias Lou­renço fica também li­gado aos cé­le­bres «pas­seios no Tejo» que, no início da dé­cada de 40, en­vol­veram des­ta­cadas fi­guras das artes e das le­tras e im­pul­si­o­naram o mo­vi­mento neo-re­a­lista.

Re­vo­lu­ci­o­nário pro­fis­si­onal

En­vol­vendo-se in­ten­sa­mente no pro­cesso de re­or­ga­ni­zação do Par­tido, ini­ciado no final de 1940 por des­ta­cados mi­li­tantes co­mu­nistas e no qual Álvaro Cu­nhal de­sem­pe­nharia um papel de pri­mor­dial im­por­tância, An­tónio Dias Lou­renço passou à clan­des­ti­ni­dade como fun­ci­o­nário do PCP em 1942. A li­gação às ti­po­gra­fias clan­des­tinas e ao apa­relho cen­tral de dis­tri­buição da im­prensa foi uma das suas pri­meiras res­pon­sa­bi­li­dades. Re­to­mada a pu­bli­cação re­gular do Avante! em Agosto de 1941, havia que con­so­lidar e me­lhorar o apa­relho téc­nico do Par­tido e todo o tra­balho cons­pi­ra­tivo que isso en­volvia.

Numa en­tre­vista ao Avante!, con­ce­dida em 2001, Dias Lou­renço adi­antou os traços ge­rais desta ta­refa tão exi­gente quanto vital: «Tí­nhamos de criar um apa­relho de di­fusão do Avante!, cada vez mais se­guro. En­quanto a or­gâ­nica do Par­tido as­sen­tava em or­ga­nismos co­lec­tivos (clan­des­tinos, com ele­mentos que às vezes nem sa­biam o nome uns dos ou­tros), a or­gâ­nica para a dis­tri­buição da im­prensa clan­des­tina tinha de ser ri­go­ro­sa­mente in­di­vi­dual. Tu levas o em­brulho para a or­ga­ni­zação tal, en­tregas a res­pon­sá­veis di­rectos que dis­tri­buíam a ou­tras pes­soas para levar para ou­tros sí­tios.»

Nestes pri­meiros anos de vida clan­des­tina, as­sumiu ta­refas no Ri­ba­tejo, em Lisboa, na Margem Sul, no Alen­tejo, no Al­garve e em zonas da Beira In­te­rior, onde se tra­vavam lutas em di­versos sec­tores pro­fis­si­o­nais e das po­pu­la­ções contra o ra­ci­o­na­mento e a ca­rência de gé­neros. Em tempos em que a bi­ci­cleta era o meio de trans­porte «ofi­cial» dos fun­ci­o­ná­rios do Par­tido, esta era uma ac­ti­vi­dade in­tensa e des­gas­tante: «A gente co­nhecia Por­tugal com a ge­o­grafia das botas», con­fessou ao Avante! na mesma en­tre­vista.

De­pois de, em 1943, no III Con­gresso do Par­tido, ter sido eleito para o Co­mité Cen­tral, onde per­ma­neceu du­rante 53 anos, An­tónio Dias Lou­renço in­tegra o Co­mité Di­ri­gente das greves de 8 e 9 de Maio, que se reunia na casa clan­des­tina em que vivia, em Bar­ca­rena. Estas lutas, como as tra­vadas nos anos an­te­ri­ores e as ma­ni­fes­ta­ções da vi­tória, em Maio de 1945, po­ten­ci­aram o alar­ga­mento da uni­dade an­ti­fas­cista pela qual o PCP há muito se batia: surge o Mo­vi­mento de Uni­dade Na­ci­onal An­ti­fas­cista (MUNAF), que agrega todos os par­tidos e ten­dên­cias da opo­sição. Dias Lou­renço foi re­pre­sen­tante do PCP no Con­selho Na­ci­onal deste mo­vi­mento.

Na sequência do as­sas­si­nato pela PVDE/​PIDE de Al­fredo Dinis (Alex), em 1945, An­tónio Dias Lou­renço – João, na clan­des­ti­ni­dade – passou a as­sumir a res­pon­sa­bi­li­dade pela re­gião de Lisboa, que mantém até 1948. No ano an­te­rior, teve uma par­ti­ci­pação ac­tiva na grandes greves dos ope­rá­rios da cons­trução naval. A ta­refa se­guinte foi o Alen­tejo, onde acom­pa­nhou e di­rigiu as lutas dos ope­rá­rios agrí­colas contra o de­sem­prego e a mi­séria e pela cons­trução da sua uni­dade nas praças de jorna. Era aqui que in­te­vinha quando foi preso pela pri­meira vez, em 1949, ano em que di­rigiu o jornal O Cam­ponês.

Voltar à luta, sempre

Re­to­mada a li­ber­dade em 1954, após uma au­da­ciosa fuga da for­ta­leza de Pe­niche (ver caixa), An­tónio Dias Lou­renço re­tomou ime­di­a­ta­mente a sua ac­ti­vi­dade re­vo­lu­ci­o­nária clan­des­tina. Dois anos de­pois, num mo­mento par­ti­cu­lar­mente di­fícil para o Par­tido pri­vado - do seu mais des­ta­cado di­ri­gente Álvaro Cu­nhal (preso desde 1949), e fus­ti­gado por su­ces­sivos golpes po­li­ciais - foi cha­mado à Co­missão Po­lí­tica. No ano se­guinte, na sequência do V Con­gresso do Par­tido, passou a in­te­grar também o Se­cre­ta­riado, onde ficou até ser no­va­mente preso, em 1962.

Neste pe­ríodo, em que as­sumiu entre 1957 e a sua se­gunda prisão a res­pon­sa­bi­li­dade pelo Avante!, a sua ac­ti­vi­dade re­vo­lu­ci­o­nária está li­gada ao as­censo da luta de massas que se faz sentir nos anos 1957/​58 e, no­va­mente (após um pe­ríodo de re­fluxo pro­vo­cado pela re­pressão e pelo desvio de di­reita no Par­tido), em 1961/​62. A sua par­ti­ci­pação na or­ga­ni­zação, a partir do ex­te­rior, da Fuga de Pe­niche de Ja­neiro de 1960 (que de­volveu à luta Álvaro Cu­nhal e ou­tros nove des­ta­cados qua­dros do Par­tido) e no apoio à saída clan­des­tina do País de Agos­tinho Neto, para que pu­desse di­rigir a luta an­ti­co­lo­ni­a­lista do povo de An­gola, foram al­gumas das im­por­tantes ta­refas que en­vol­veram An­tónio Dias Lou­renço.

A sua se­gunda prisão, re­a­li­zada pouco de­pois do grande 1.º de Maio de 1962 e da con­quista da jor­nada de oito horas nos campos, durou até ao 25 de Abril de 1974, quando os por­tões das mas­morras se abriram do lado de fora.

 

Re­vo­lução e contra-re­vo­lução

A energia e te­na­ci­dade que ca­rac­te­ri­zaram a acção re­vo­lu­ci­o­nária de An­tónio Dias Lou­renço du­rante o longo e duro com­bate contra o fas­cismo mar­caram igual­mente a sua vida mi­li­tante du­rante e após a Re­vo­lução de Abril.

Li­ber­tado do Hos­pital-Prisão de Ca­xias, na manhã de 26 de Abril de 1974, passou de ime­diato a in­te­grar o tra­balho de di­recção do Par­tido, como membro do Co­mité Cen­tral. Quatro dias de­pois, es­tava no ae­ro­porto de Lisboa a re­ceber o Se­cre­tário-geral do Par­tido, Álvaro Cu­nhal, ao mesmo tempo que par­ti­ci­pava ac­ti­va­mente na Co­missão Uni­tária que pre­parou o gran­dioso 1.º de Maio que en­cheu as ruas do País e con­firmou a real in­fluência do PCP e do mo­vi­mento sin­dical e po­pular.

O pri­meiro Avante! legal, que saiu a 17 de Maio de 1974 e atingiu uma ti­ragem de meio mi­lhão de exem­plares, teve a sua di­recção. Du­rante os 17 anos em que foi di­rector do órgão cen­tral do Par­tido, Dias Lou­renço foi um des­ta­cado obreiro do Avante! legal (para o qual es­creveu cen­tenas de ar­tigos e edi­to­riais), ins­tru­mento es­sen­cial para a luta dos co­mu­nistas pelo apro­fun­da­mento da Re­vo­lução e em de­fesa das suas mais avan­çadas con­quistas. Nesta qua­li­dade, man­teve nu­me­rosos con­tactos com ou­tros jor­nais co­mu­nistas, aos quais con­cedeu en­tre­vistas e de­poi­mentos sobre a Re­vo­lução por­tu­guesa, a sua na­tu­reza e ob­jec­tivos. Logo em Ou­tubro de 1974, re­pre­sentou o Avante! na Con­fe­rência da Im­prensa Co­mu­nista, pro­mo­vida em Praga pela Re­vista In­ter­na­ci­onal.

A sua in­ter­venção no 11 de Março de 1975, junto ao Ralis sob fogo, é bem de­mons­tra­tiva do ca­rácter e da co­ragem de An­tónio Dias Lou­renço.

Após o VIII Con­gresso do PCP, re­a­li­zado em 1976, passou a in­te­grar a Co­missão Po­lí­tica do Co­mité Cen­tral, na qual per­ma­neceu até 1988. Em su­ces­sivos actos elei­to­rais re­a­li­zados entre 1976 e 1985 (As­sem­bleia Cons­ti­tuinte e As­sem­bleia da Re­pú­blica) seria eleito de­pu­tado pelos cír­culos de Coimbra e San­tarém, mar­cando, com muitos ou­tros ca­ma­radas, uma in­ter­venção ins­ti­tu­ci­onal pro­fun­da­mente li­gada aos pro­blemas e às lutas dos tra­ba­lha­dores e das po­pu­la­ções, que pas­saria a ca­rac­te­rizar a acção dos de­pu­tados do PCP. Até hoje.

Até ao fim dos seus dias, man­teve uma par­ti­ci­pação re­gular na ac­ti­vi­dade do Par­tido e uma pre­sença pró­xima junto dos mi­li­tantes co­mu­nistas, par­ti­cu­lar­mente dos mais jo­vens. Em 2005, por oca­sião dos seus 90 anos, deu uma en­tre­vista ao Avante! na qual se con­si­de­rava feliz, so­bre­tudo por ver «toda essa gente nova que vem ao Par­tido, para pegar na ban­deira e andar para a frente».

 

As pri­sões, as tor­turas, a morte do filho
«A mim não me hão-de ver a cara tor­tu­rada»

A prisão e a tor­tura eram uma pos­si­bi­li­dade real na vida dos fun­ci­o­ná­rios clan­des­tinos do Par­tido, todos o sa­biam. O con­fronto com a po­lícia, de­si­gual, era uma «prova de fogo» dos re­vo­lu­ci­o­ná­rios. An­tónio Dias Lou­renço, como muitos ou­tros, passou-a com dis­tinção: es­pan­ca­mentos pro­lon­gados, tor­tura do sono, pressão psi­co­ló­gica com os fi­lhos, tudo lhe fi­zeram. Mas nada o fez ceder! Não falou. Nunca traiu. Em tri­bunal, acusou o fas­cismo e de­fendeu o pro­jecto do Par­tido, a sua luta e os seus ob­jec­tivos.

A morte do seu filho An­tónio, ainda cri­ança, foi a maior das má­goas da sua vida. O facto de estar preso e de não lhe per­mi­tirem com­pa­recer no fu­neral foi uma forma par­ti­cu­lar­mente vil de pro­curar que­brar a sua fir­meza. Uma vez mais, fa­lharam. A prisão da sua filha Ivone foi igual­mente causa de so­fri­mento. Mas também de or­gulho, pela mu­lher e pela co­mu­nista que se tor­nara.

A forma como en­carou as vi­o­lên­cias, as ar­bi­tra­ri­e­dades e a dor, fí­sica e psi­co­ló­gica, re­sumiu-a na en­tre­vista que deu ao Avante! em 2005: «Eu já sabia que eles gos­tavam de ver a cara dos presos sob a tor­tura. E re­solvi cons­truir para a minha cara um li­geiro sor­riso cons­tante. (…) A mim não me hão-de ver a cara tor­tu­rada.»

Fuga au­da­ciosa

Ao longo dos 17 anos em que es­teve preso (em dois pe­ríodos), An­tónio Dias Lou­renço pensou sempre em evadir-se, para con­ti­nuar em li­ber­dade a ur­gente luta contra o fas­cismo. Em De­zembro de 1954, quando se en­con­trava en­car­ce­rado há já cinco anos, pro­ta­go­nizou uma das mais au­da­ci­osas fugas da his­tória da re­sis­tência an­ti­fas­cista por­tu­guesa, ao lançar-se para o mar de Pe­niche após es­capar do «Se­gredo».

Para esta fuga, Dias Lou­renço mo­bi­lizou toda a sua co­ragem e cri­a­ti­vi­dade: con­se­guiu in­tro­duzir no «Se­gredo» uma faca de sa­pa­teiro, con­tor­nando a cons­tante vi­gi­lância; rasgou, pouco a pouco, o pos­tigo na porta da cela; cortou co­ber­tores às tiras para fazer uma corda; e atirou-se ao mar. Os im­pre­vistos que sur­giram, que po­diam ter sido fa­tais, foram su­pe­rados: a corda era curta de­mais, pelo que teve de se lançar ao mar de uma al­tura muito maior do que a que tinha ima­gi­nado; a maré, ao con­trário do que jul­gava, es­tava a vazar, ar­ras­tando-o no sen­tido oposto à praia. Quando chegou a terra, hora e meia de­pois, es­tava exausto e pró­ximo da hi­po­termia. Os tra­ba­lha­dores de uma car­rinha de peixe a quem pediu au­xílio, ar­ris­cando dizer quem era, ga­ran­tiram o êxito da fuga.

Na se­gunda prisão, de 12 anos, An­tónio Dias Lou­renço ar­qui­tectou di­versos planos de fuga. Aliás, disse uma vez, com humor, o 25 de Abril «lixou-me a fuga»: para es­capar do Hos­pital-Prisão de Ca­xias pre­tendia dis­farçar-se de mu­lher e sair pela porta da frente no final do ho­rário das vi­sitas. Já tinha em seu poder, aliás, duas pe­rucas (uma loira e uma mo­rena), que o actor Ro­gério Paulo con­se­guira fazer en­trar na ca­deia.

Era assim An­tónio Dias Lou­renço…