Degradante…

Luís Carapinha

Misto de opor­tu­nismo fla­grante, ci­nismo e de­lírio de­ma­gó­gico

O pre­si­dente ucra­niano, Po­ro­chenko, foi re­ce­bido na se­mana pas­sada em An­cara pelo ho­mó­logo turco, Er­dogan. Da vi­sita e de­cla­ração con­junta di­vul­gada res­saltam as ques­tões da co­o­pe­ração mi­litar, tanto no plano bi­la­teral, como no âm­bito da NATO, de que a Ucrânia não é membro (re­corde-se que a Ci­meira de Bu­ca­reste da NATO, em 2008, pro­meteu a in­clusão da ex-re­pú­blica so­vié­tica). Tur­quia e Ucrânia com­pro­me­teram-se a re­forçar a se­gu­rança no Mar Negro e, se­gundo Po­ro­chenko, An­cara vai apoiar Kiev a res­taurar a ju­ris­dição sobre a Cri­meia (!). Por sua vez, a Ucrânia propôs a par­ti­ci­pação do ca­pital turco no pro­grama de pri­va­ti­za­ções em larga es­cala anun­ciado para 2016. Pre­ci­sa­mente, os temas da pro­pri­e­dade e do ali­nha­mento mi­litar – o tra­tado de as­so­ci­ação de­si­gual com a UE tem re­lação com ambos – estão entre as ques­tões de­ter­mi­nantes do golpe de es­tado de 2014 e do em­purrar da Ucrânia para o abismo da guerra civil. Do en­contro bi­la­teral per­passa um misto de opor­tu­nismo fla­grante, ci­nismo e de­lírio de­ma­gó­gico. Um ce­nário, por­ven­tura, mais pro­pício de uma ópera-bufa, mas nem por isso menos fu­nesto para os in­te­resses da paz e de­mo­cracia nos dois países e res­pec­tivas re­giões.

A cre­di­bi­li­dade de Po­ro­chenko, ven­cedor da mas­ca­rada elei­toral com que se pre­tendeu le­ga­lizar o poder da junta gol­pista, é baixa, apesar do as­solar con­tínuo da cam­panha de fa­bri­cação do ini­migo. Pior do que o pre­si­dente só o pri­meiro-mi­nistro, Iat­se­niúk – o tal que afirmou, quando as­sumiu o cargo, ir cum­prir um papel de ka­mi­kaze po­lí­tico, mas que, en­tre­tanto, foi fi­cando e apro­veitou para ex­pandir subs­tan­ci­al­mente a for­tuna –, cuja exo­ne­ração é anun­ciada neste dias como imi­nente em Kiev. As pro­messas elei­to­rais do oli­garca pre­si­dente caíram em saco roto: dei­xarei os ne­gó­cios (em menos de dois anos de poder os seus ac­tivos mul­ti­pli­caram-se por vá­rias vezes); ces­sarei a guerra em questão de dias e não se­manas (o con­flito san­grento na Ucrânia dura há pra­ti­ca­mente dois anos e Kiev teima em não aplicar as de­ci­sões do acordo de Minsk de 2015 para uma so­lução po­lí­tica e ne­go­ciada); nunca bom­bar­de­arei [a ci­dade de] Do­netsk (as ci­dades e po­vo­a­ções do Don­bass, in­cluindo as ca­pi­tais Do­netsk e Lu­gansk, foram ob­jecto de bom­bar­de­a­mentos bár­baros pelos ba­ta­lhões ne­o­nazis e tropas ucra­ni­anas). A eco­nomia ucra­niana en­contra-se de rastos, em pro­funda re­cessão (num país que nunca re­cu­perou o nível do PIB de 1991, úl­timo ano da URSS), a in­dús­tria e apa­relho pro­du­tivo em es­tado de ace­le­rada des­truição, a ri­queza na­ci­onal a saque. O grande ne­gócio é a pri­va­ti­zação das terras ne­gras ucra­ni­anas, ver­da­deiro aten­tado contra o povo ucra­niano e maná para as mul­ti­na­ci­o­nais do agro-ne­gócio. O país en­contra-se em de­fault, su­jeito às tran­ches e chan­tagem do FMI e cres­cente im­pa­ci­ência dos pa­tro­ci­na­dores do golpe da Maidan. A pugna inter-oli­gár­quica não es­mo­rece e os ín­dices de po­breza e de­si­gual­dade so­cial dis­pa­raram. A de­riva fas­cista e a via re­pres­siva, que apelam ao anti-co­mu­nismo mais pri­mário, à adul­te­ração e su­pressão da me­mória e ver­dade his­tó­ricas, não salvam Po­ro­chenko e com­parsas gol­pistas.

Por sinal, após o en­contro de An­cara as tropas ucra­ni­anas des­fe­riram vi­o­lentos ata­ques nos ar­re­dores de Do­netsk. E tropas turcas ocu­param po­si­ções dentro da Síria, junto à linha de fron­teira, na vés­pera do re­a­ta­mento das con­ver­sa­ções de Ge­nebra. Os de­sen­vol­vi­mentos na frente mi­litar nos úl­timos meses ex­pu­seram o apoio da Tur­quia ao EI (de novo evi­den­ci­ando que o ter­ro­rismo is­lâ­mico é es­sen­ci­al­mente uma cri­a­tura do im­pe­ri­a­lismo). Mas Er­dogan não de­siste da sua cru­zada re­ac­ci­o­nária neo-oto­mana, nas suas múl­ti­plas ver­tentes (da as­fixia anti-de­mo­crá­tica, à in­ter­venção na Síria e os si­nis­tros acordos com a UE sobre re­fu­gi­ados). A ali­ança de An­cara e Kiev, aus­pi­ciada, pesem em­bora di­ver­gên­cias me­nores, pelo amo comum, é bem apa­nágio e ex­pressão do tempo tu­mul­tuoso de apro­fun­da­mento da crise geral do ca­pi­ta­lismo.




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