Os 120 anos do «Pobre B. B.»

José Carlos Faria

RE­VO­LU­CI­ONAR A ARTE Quando, às 4.30 da ma­dru­gada de 10 de Fe­ve­reiro de 1898, veio ao mundo na ci­dade alemã de Augs­burgo Eugen Ber­told Fri­e­drich Brecht, filho de um prós­pero in­dus­trial, Marx (fa­le­cido em 1883) tinha nas­cido há 80 anos, o Ma­ni­festo Co­mu­nista, com o es­pectro que per­corria a Eu­ropa, fora edi­tado há meio sé­culo e, na Rússia cza­rista, Kons­tantin Sta­nis­lavsky e Ne­mi­ro­vitch-Dant­chenko fun­davam o Te­atro de Arte de Mos­covo.

Para cons­truir o so­ci­a­lismo não bastam de­cretos e

O jovem, criado no seio da bur­guesia, viria mais tarde a mudar o seu nome para Ber­tolt Brecht, as­si­nando, por vezes, Bert Brecht ou mesmo b. b. (em mi­nús­culas).

Num poema, re­lata:

Eu cresci como filho

De gente abas­tada. (…)

Quando era já cres­cido e olhei à minha roda,

Não me agradou a gente da minha classe;

Nem o mandar nem ser ser­vido.

E eu aban­donei a minha classe e juntei-me

À gente pe­quena.

Assim cri­aram eles um traidor, edu­caram-no

Nas suas artes, e ele

Atraiçoa-os ao ini­migo. (…)

Des­monto a ba­lança da sua jus­tiça

E mostro os pesos falsos.

Os es­piões deles in­formam-nos

De que estou com os es­po­li­ados

A pre­parar a re­volta.

Ad­mo­es­taram-me e ti­raram-me

O que ga­nhei com o meu tra­balho. Como não me emendei

Deram-me caça. (…)

Per­se­guiram-me com um man­dato de cap­tura

Que me acu­sava de opi­niões baixas, isto é:

Das opi­niões dos de baixo.

Aonde chego, fico mar­cado

Pra todos os pos­si­dentes, mas os que nada têm

Lêem o man­dato e

Dão-me abrigo. «A ti» – ouço eu dizer –

«Ex­pul­saram-te eles, e

Com razão».

«O pobre B. B., vindo das ne­gras flo­restas para o as­falto das ci­dades», poeta, dra­ma­turgo, en­ce­nador, en­saísta e teó­rico, viria a re­vo­lu­ci­onar a arte te­a­tral, pro­pondo e de­fi­nindo o mo­delo de uma nova con­cepção es­té­tica, ma­te­ri­a­lista e di­a­léc­tica, de em­pe­nha­mento po­lí­tico vi­sando a trans­for­mação da re­a­li­dade so­cial, ope­rada pela su­pe­ração da ali­e­nação e pelo in­cre­mento da cons­ci­ência crí­tica dos es­pec­ta­dores.

Dizia:

O pior anal­fa­beto é o anal­fa­beto po­lí­tico.

Ele não houve, não fala, nem par­ti­cipa nos acon­te­ci­mentos po­lí­ticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da fa­rinha,

da renda de casa, do sa­pato e do re­médio de­pendem das de­ci­sões

po­lí­ticas.

O anal­fa­beto po­lí­tico é tão burro que se or­gulha e incha o peito di­zendo

que odeia a po­lí­tica.

Não sabe o im­becil que da sua ig­no­rância po­lí­tica nasce a pros­ti­tuta,

o menor aban­do­nado, o as­sal­tante e o pior de todos os ban­didos,

que é o po­lí­tico vi­ga­rista, reles, o cor­rupto e la­caio das em­presas

na­ci­o­nais e mul­ti­na­ci­o­nais.

Em 1917, Brecht é in­cor­po­rado no exér­cito, como en­fer­meiro num hos­pital da rec­ta­guarda e ra­pi­da­mente des­mo­bi­li­zado de­vido à sua frágil saúde, aliada a uma evi­dente des­mo­ti­vação. Es­creve de­pois «Tam­bores na Noite», que virá a ga­nhar o Prémio Kleist em 1920. A ex­pe­ri­ência vi­vida no pe­ríodo de con­tacto com a re­a­li­dade da I Guerra Mun­dial e da der­ro­tada Re­vo­lução Es­par­ta­quista que se se­guiu, viria a ter in­fluência na sua adesão ao mar­xismo, ao qual atri­buiu enorme im­por­tância:

«Tenho de con­fessar que foi só de­pois de ler “O Es­tado e a Re­vo­lução”, de Le­nine, e, em se­guida, “O Ca­pital”, de Marx, que com­pre­endi a minha po­sição no plano fi­lo­só­fico». «Lendo “O Ca­pital”, com­pre­endi as mi­nhas peças. Bem en­ten­dido, não des­cobri que tinha es­crito in­vo­lun­ta­ri­a­mente um monte de peças mar­xistas. Mas este Marx era o único es­pec­tador que eu con­se­guia con­ceber para as mi­nhas peças. Só um homem com tais pre­o­cu­pa­ções podia in­te­ressar-se por peças como as mi­nhas. Não por serem in­te­li­gentes, mas porque ele o era. Elas ofe­re­ciam-lhe ma­te­riais de ob­ser­vação».

Vai então es­crever as cha­madas peças di­dác­ticas sobre as con­tra­di­ções da en­gre­nagem ca­pi­ta­lista, as quais irão ser mon­tadas quer em re­gime pro­fis­si­onal quer em grupos de ama­dores es­tu­dantis ou li­gados aos sin­di­catos. 1928 é o ano da es­treia de «A ópera dos 3 Vin­téns», que põe em causa todo um sis­tema so­cial, toda uma ordem, a da so­ci­e­dade bur­guesa (O que é o as­salto a um banco, com­pa­rado com a fun­dação de um banco?), e que, com a mú­sica de Kurt Weill, irá obter um re­tum­bante su­cesso mun­dial.

A ver­dade está na vida real

O crash da Bolsa de Nova Iorque e as suas re­per­cus­sões, em 1929 (ano do ca­sa­mento com a ac­triz co­mu­nista Helen Weigel), sus­citar-lhe-á um pro­cesso de aná­lise e des­mon­tagem: Sou um autor de peças. Mostro aquilo que vi. Nos mer­cados dos ho­mens vi como o homem era ne­go­ciado. Isso é o que eu mostro, eu, o autor de peças. A bar­bárie não provém da bar­bárie, mas dos ne­gó­cios – surge quando os ho­mens de ne­gó­cios deixam de poder ne­go­ciar sem ela.

Brecht iria então ela­borar a te­oria do Te­atro Épico, con­cre­ti­zada no «Pe­queno Or­ganon para o Te­atro» e na «Compra do Latão», através de al­guns pontos fun­da­men­tais: a forma épica faz do es­pec­tador um ob­ser­vador mas des­perta-lhe a cons­ci­ência crí­tica e exige-lhe de­ci­sões; visão do mundo; o es­pec­tador é co­lo­cado di­ante de al­guma coisa e os sen­ti­mentos são ele­vados a uma to­mada de cons­ci­ência; o ser so­cial de­ter­mina o pen­sa­mento.

In­sis­tindo que o texto não deve ser sen­ti­mental ou mo­ra­li­zante, mas sim mos­trar a moral e a sen­ti­men­ta­li­dade, cabe pois ao pú­blico re­flectir e agir fora do te­atro. A ver­dade não está no palco mas na vida real. Com­pre­ender a re­a­li­dade e, se pos­sível, trans­formá-la. Tal ta­refa não per­tence ao te­atro – que ele se con­tente, pelos seus meios, em nos fazer ver essa ne­ces­si­dade; já não será pouco. Um te­atro que mostre a re­a­li­dade mas que, de igual modo, es­teja apto a trans­formar o es­pec­tá­culo num prazer.

A fer­ra­menta para o tra­balho do actor vai ser o Ver­frem­dung­sef­feckt, também por muitos de­sig­nado Efeito V, que pre­co­niza a dis­tan­ci­ação, o es­tra­nha­mento, a não iden­ti­fi­cação – aos ac­tores cabe então uma dupla função: re­pre­sentar as suas per­so­na­gens e, em si­mul­tâneo, serem os juízes crí­ticos dessas mesmas per­so­na­gens através do gestus so­cial, ou seja, a ex­pressão e gestos que acon­tecem entre pes­soas de uma de­ter­mi­nada época. A his­to­ri­ci­zação, pró­xima das for­mu­la­ções sobre o con­di­ci­o­na­mento his­tó­rico da Arte em Marx, as­sume um ca­rácter de­ci­sivo, em que os acon­te­ci­mentos, mesmo os quo­ti­di­anos, devem ser apre­sen­tados como tran­si­tó­rios. To­davia Brecht não deixou de alertar para os pe­rigos desse Efeito V ser to­mado como um fim em si mesmo, isto é, o es­pec­tador fas­ci­nado pelo pro­cesso da crí­tica sem ser to­cado pelo sig­ni­fi­cado da crí­tica.

Quando Hi­tler sobe ao poder, a 30 de Ja­neiro de 1933, tem início um pe­ríodo ex­tre­ma­mente con­tur­bado. O par­la­mento é dis­sol­vido de ime­diato e a 27 de Fe­ve­reiro, in­cen­diado. No dia se­guinte, Brecht aban­dona a Ale­manha, com a sua mu­lher e os dois fi­lhos, Stefan e Bar­bara, es­ca­pando assim à vaga de enorme re­pressão, com pri­sões e as­sas­si­natos, que se vai abater sobre an­ti­fas­cistas, em es­pe­cial sin­di­ca­listas, in­te­lec­tuais, es­tu­dantes e mem­bros de par­tidos de es­querda. Tempos som­brios em que falar sobre uma ár­vore é quase um crime, porque equi­vale a calar tantas per­fí­dias, como dei­xará pa­tente num la­mento ma­goado. O exílio, para Brecht, a quem os nazis re­tiram a ci­da­dania alemã, vai fazer-se, tro­cando de país como de sa­patos, através das guerras de classes, numa rota que passa pela Che­cos­lo­vá­quia, Suíça, Di­na­marca, Suécia, Fin­lândia, União So­vié­tica, para se con­cluir nos EUA. Fixa-se na Ca­li­fórnia, ten­tando tra­balho como ar­gu­men­tista em Hollywood, es­creve peças de re­sis­tência à ofen­siva nazi-fas­cista («As es­pin­gardas da Se­nhora Carrar», a pro­pó­sito da Guerra Civil de Es­panha e «Terror e Mi­séria do III Reich»), po­emas in­tro­du­zidos e dis­tri­buídos clan­des­ti­na­mente em ter­ri­tório alemão e ainda ou­tros textos te­a­trais que virão pos­te­ri­or­mente a ser es­tre­ados após o final da II Guerra Mun­dial.

A 30 de Ou­tubro de 1947 é in­ti­mado a com­pa­recer pe­rante a Co­missão de Ac­ti­vi­dades Anti-Ame­ri­canas, criada com o ob­jec­tivo de con­duzir uma caça às bruxas contra as «ac­ti­vi­dades sub­ver­sivas». Brecht con­si­dera este in­ter­ro­ga­tório como «uma exe­cução fria, como lá se chama guerra fria a uma certa forma de paz. O de­lin­quente não é pri­vado de vida, mas de qual­quer meio de vida; o seu nome não apa­rece nas listas cro­no­ló­gicas mas fi­gura nas listas ne­gras». Des­pis­tando os seus juízes, re­cor­rendo à as­túcia e à ironia, uma vez mais, logo no dia se­guinte, parte rumo à Eu­ropa num voo da Air France. Cu­ri­o­sa­mente, sete meses de­pois, a Aca­demia Ame­ri­cana de Artes e Le­tras iria anun­ciar o seu nome como um dos 15 au­tores con­tem­plados com um prémio de mil dó­lares por mé­rito ar­tís­tico.

Fi­de­li­dade ao ideal co­mu­nista

Com o sur­gi­mento da RDA, em 1949, Brecht vai viver em Berlim-Leste e funda, com Helen Weigel, o Ber­liner En­semble.

A 17 de Junho de 1953, fortes con­vul­sões so­ciais ocorrem de­vido à ur­gente ne­ces­si­dade de bens de con­sumo e ali­men­tação pro­vo­cadas por um plano oci­dental, que, por via do mer­cado negro, pre­tendia des­truir o valor da moeda da RDA, ar­rui­nando a sua es­tru­tura fi­nan­ceira. Brecht, numa longa carta ao 1.º Mi­nistro com crí­ticas e su­ges­tões, de que os jor­nais só pu­bli­ca­riam a parte final, na qual ex­primia iden­ti­fi­cação com o Par­tido e o re­gime, es­crevia:

«Es­pero agora que os pro­vo­ca­dores sejam iso­lados e que as suas redes sejam des­truídas; mas também que não se co­loque no mesmo nível estes pro­vo­ca­dores e os ope­rá­rios que se ma­ni­fes­taram para ex­primir o seu justo des­con­ten­ta­mento, a fim de não per­turbar no fu­turo a dis­cussão tão ne­ces­sária sobre os erros co­me­tidos pelos dois lados».

O go­verno dava conta de que para cons­truir o so­ci­a­lismo não bastam de­cretos e pro­cla­ma­ções e Brecht cha­mava a atenção para isso:

Após a in­sur­reição de 17 de Junho

O se­cre­tário da União de Es­cri­tores

Fez dis­tri­buir pan­fletos na Ave­nida Es­ta­line

Em que se lia que, por culpa sua,

O povo per­dera a con­fi­ança do go­verno

E só à custa de es­forços re­do­brados

A po­deria re­cu­perar. Mas não seria

Mais sim­ples para o go­verno

Dis­solver o povo

E eleger outro?

Porém, a fi­de­li­dade ao ideal co­mu­nista per­ma­necia firme:

 

LOUVOR DO CO­MU­NISMO

É ra­zoável, quem quer o en­tende. É fácil

Tu não és ne­nhum ex­plo­rador, podes com­pre­endê-lo.

É bom para ti, in­forma-te dele.

Os es­tú­pidos chamam-lhe es­tú­pido e os porcos chamam-lhe porco.

Ele é contra a por­caria e a es­tu­pidez.

Os ex­plo­ra­dores chamam-lhe crime

Mas nós sa­bemos:

Ele é o fim dos crimes.

Não é ne­nhuma lou­cura, mas sim o fim da lou­cura.

Não é o enigma

Mas sim a so­lução.

É o fácil que é di­fícil de fazer.

Assim com está não fica

Em 1954, a di­gressão pa­ri­si­ense do Ber­liner En­semble ao fes­tival do Théâtre des Na­tions, com «A Mãe» e «Mãe Co­ragem e os seus fi­lhos» re­sulta num êxito es­tron­doso.

Brecht, en­tre­tanto, com a fi­gura do sr. Keuner, o seu iró­nico alter ego fi­lo­só­fico, e também através da po­esia de sar­casmo e ero­tismo, pros­se­guia a crí­tica da moral bur­guesa a que se en­tre­gava desde a ju­ven­tude.

A 14 de Agosto de 1956, a meio dos en­saios de «A Vida de Ga­lileu», Brecht morre com um en­farte de mi­o­cárdio. Pouco tempo antes tinha es­crito:

Dis­penso a pedra tu­mular, mas

Se fi­zerem questão de me dar uma

Gos­taria que nela fosse es­crito:

Ele deu su­ges­tões. Nós acei­támo-las.

Tal ins­crição

A todos hon­raria.

No dia 17 é en­ter­rado junto ao tú­mulo de Hegel, fi­ló­sofo que tanto apre­ciava pelos seus es­tudos sobre a Di­a­léc­tica, cujo louvor Brecht tinha ce­le­brado:

A in­jus­tiça ca­minha hoje com passo firme.

Os opres­sores ins­talam-se pra dez mil anos.

A força afirma: Como está, assim é que fica.

Voz ne­nhuma soa além da voz dos do­mi­na­dores

E nas feiras diz alto a ex­plo­ração: Agora é que eu co­meço.

Mas dos opri­midos dizem muitos agora:

O que nós que­remos, nunca pode ser.

Quem ainda vive, que não diga nunca!

O certo não é certo.

Assim como está não fica.

Quando os do­mi­na­dores ti­verem fa­lado

Fa­larão os do­mi­nados.

Quem se atreve a dizer: nunca?

De quem de­pende que a opressão con­tinue? De nós.

De quem de­pende que ela seja que­brada? Igual­mente de nós.

Quem for der­ru­bado, que se le­vante!

Quem es­tiver per­dido, lute!

A quem re­co­nheceu a sua si­tu­ação, quem po­derá detê-lo?

Pois os ven­cidos de hoje são os ven­ce­dores de amanhã

E do Nunca se faz: Hoje ainda!