«A revolução cubana veio para ficar»

Gustavo Carneiro (texto) Jorge Caria (foto)

EN­TRE­VISTA Mer­cedes Mar­tínez Valdés é, desde há ano e meio, em­bai­xa­dora de Cuba em Por­tugal. Numa en­tre­vista con­ce­dida ao Avante! a pro­pó­sito dos 60 anos da Re­vo­lução Cu­bana, falou dos de­sa­fios que o país en­frenta, da te­na­ci­dade e he­roísmo do seu povo e da so­li­da­ri­e­dade que Cuba des­perta – e presta – nos qua­tros cantos do mundo.

60 anos de uni­dade, muito es­forço in­terno e apoio aos povos do mundo

A 1 de Ja­neiro de 1959 deu-se a li­ber­tação de Ha­vana e pôs-se fim à di­ta­dura de Ful­gêncio Bap­tista. Seis dé­cadas de­pois, quais os grandes de­sa­fios da Re­vo­lução cu­bana?

Em pri­meiro lugar, gos­tava de su­bli­nhar que a Re­vo­lução cu­bana veio para ficar! Desde logo porque ocorreu num mo­mento em que Cuba pre­ci­sava de uma re­vo­lução: tí­nhamos uma si­tu­ação in­sus­ten­tável de in­jus­tiça so­cial, de­sem­prego, anal­fa­be­tismo, in­sa­lu­bri­dade, cor­rupção e do­mínio es­tran­geiro. O pró­prio go­verno era sus­ten­tado pelos Es­tados Unidos da Amé­rica... Ha­vana, que em 2019 ce­lebra 500 anos da sua fun­dação, era um ca­sino e um bordel ao ser­viço do tu­rismo norte-ame­ri­cano. Era pre­ciso mudar o que existia.

Hoje, pas­sados 60 anos, o prin­cipal de­safio de Cuba é eco­nó­mico, como disse re­cen­te­mente o nosso pre­si­dente, Mi­guel Diaz-Canel.

Como tem evo­luído re­cen­te­mente a eco­nomia cu­bana?

Re­gistou um cres­ci­mento dis­creto em 2018, pouco su­pe­rior a um por cento. Este cres­ci­mento foi im­pul­si­o­nado pelos trans­portes, co­mu­ni­ca­ções, in­dús­tria de ma­nu­fac­turas, co­mércio, saúde pú­blica, cul­tura e des­porto. A in­dús­tria do açúcar e o tu­rismo bai­xaram o seu con­tri­buto para a eco­nomia, so­bre­tudo de­vido aos im­pactos do fu­racão Irma, em fi­nais de 2017, e das tre­mendas cheias ve­ri­fi­cadas no início deste ano. Tudo isto tem im­pactos pro­fundos numa eco­nomia sob a im­po­sição de um blo­queio, como a nossa.

Na evo­lução eco­nó­mica do país in­cidem as nossas pró­prias in­su­fi­ci­ên­cias e os pro­blemas acu­mu­lados, es­tru­tu­rais ou de fun­ci­o­na­mento. Mas também o blo­queio eco­nó­mico, co­mer­cial e fi­nan­ceiro dos EUA contra Cuba, que é hoje ainda mais férreo, com a ad­mi­nis­tração Trump. Só este ano [2018] os pre­juízos pro­vo­cados pelo blo­queio atin­giram, a preços cor­rentes, 4321 mi­lhões de dó­lares. Apesar disso, e pelo con­texto em que se ve­ri­ficou, os re­sul­tados são me­ri­tó­rios.

A nível so­cial, os re­sul­tados são im­pres­si­o­nantes...

Cuba mantém ín­dices so­ciais muito po­si­tivos: é o único país da Amé­rica La­tina e Ca­raíbas sem des­nu­trição in­fantil, tem um nível de es­co­la­ri­zação de 100 por cento, uma taxa anual de al­fa­be­ti­zação de adultos de 99,98% e uma das taxas de mor­ta­li­dade in­fantil mais baixas da re­gião e do mundo – 4,1 por cada mil nados-vivos em 2017 e em 2018 será ainda in­fe­rior. Ao mesmo tempo, os nossos mé­dicos têm es­tado em 67 países.

Dis­tri­buir a ri­queza de forma justa e par­ti­lhar o que temos com ou­tros países é a es­sência de Cuba, do nosso sis­tema so­ci­a­lista, do ideário de Martí e Fidel e da sua con­ti­nui­dade por Raul e Diaz-Canel.

A nível eco­nó­mico, que pers­pec­tivas se co­locam no fu­turo pró­ximo?

O Plano para 2019 é re­a­lista e ob­jec­tivo. Pre­ci­samos de co­brar opor­tu­na­mente os va­lores de­vidos pelas nossas ex­por­ta­ções, evitar gastar mais do que pro­du­zimos e fazer in­ves­ti­mentos de qua­li­dade. O nosso pre­si­dente apelou também a que se re­duza a bu­ro­cracia e que os di­ri­gentes do país aos mais va­ri­ados ní­veis sejam um factor que im­pul­sione a con­cre­ti­zação das de­ci­sões.

E temos ou­tros de­sa­fios, como os que são co­lo­cados pela dupla moeda, ou a con­cre­ti­zação das ini­ci­a­tivas in­se­ridas na «Ta­refa Vida», como nós em Cuba cha­mamos a tudo o que se re­la­ciona com o cui­dado com o meio am­bi­ente. Em 2018, a energia eléc­trica pro­du­zida a partir de fontes re­no­vá­veis foi de 3,51 por cento. Para um país não eco­no­mi­ca­mente de­sen­vol­vido como o nosso, as ener­gias não re­no­vá­veis são caras, mas o go­verno sabe que as pos­si­bi­li­dades de um fu­turo sus­ten­tável passam por aqui.

Vol­tando ao blo­queio, que voltou a me­recer o re­púdio ge­ne­ra­li­zado dos países do mundo numa nova vo­tação nas Na­ções Unidas, que con­sequên­cias tem ele no país?

Antes da apre­sen­tação anual na As­sem­bleia-geral das Na­ções Unidas da re­so­lução exi­gindo o fim do blo­queio, apre­sen­támos um re­la­tório sobre as suas con­sequên­cias no país e o nosso mi­nistro das Re­la­ções Ex­te­ri­ores fez uma in­ter­venção du­rante a pró­pria sessão. Estes são dois do­cu­mentos es­sen­ciais para se apre­ender as con­sequên­cias do blo­queio na so­ci­e­dade cu­bana.

Há cri­anças sem acesso a me­di­ca­mentos para o cancro por estes serem pro­du­zidos nos EUA ou terem in­cor­po­ração de pro­dutos norte-ame­ri­canos, por mais ín­fima que seja. As nossas cri­anças dos zero aos sete anos re­cebem um litro de leite diário sub­si­diado e nós temos de com­prar esse leite muito longe, na Eu­ropa ou mesmo na Nova Ze­lândia, apesar de os EUA serem, pela pro­xi­mi­dade, um dos nossos mer­cados na­tu­rais. A lei Helms-Burton [uma das leis norte-ame­ri­canas que re­gula o blo­queio] impõe, por exemplo, que um navio que traga pro­dutos para Cuba es­teja im­pe­dido de atracar nos EUA nos seis meses se­guintes.

O blo­queio é o maior obs­tá­culo ao de­sen­vol­vi­mento do nosso país.

Como se con­torna uma si­tu­ação destas?

Em pri­meiro lugar, com muito es­forço do povo cu­bano, que re­siste em con­di­ções he­róicas, e pela sua uni­dade, que a nossa his­tória já de­mons­trou ser fun­da­mental. Em se­gundo lugar, com o nosso sis­tema so­ci­a­lista, que dis­tribui o que há por todos de forma justa. Para um eu­ropeu, pode não ser fácil aceitar que os cu­banos te­nham um cartão de dis­tri­buição de ali­mentos, mas em Cuba todos re­cebem gra­tui­ta­mente um cabaz de pro­dutos es­sen­ciais (arroz, feijão, açúcar, sal, pro­teínas e óleo), que as­se­gura a todos o ele­mentar.

No quadro da Amé­rica La­tina, Cuba é, em di­versos in­di­ca­dores, um ver­da­deiro «oásis», não con­corda?

Dou o exemplo de um tu­rista eu­ropeu que es­teve em Cuba de­pois de ter es­tado num outro país da Amé­rica La­tina. Quando pas­seava por Ha­vana, de manhã, per­guntou: «onde estão as cri­anças? No outro país onde es­tive, a esta hora, muitas es­tavam na rua a limpar vi­dros de carros ou a pedir es­molas.» Ti­vemos que res­ponder que as nossas cri­anças, a partir das oito horas da manhã estão na es­cola, todas!

Não somos a so­ci­e­dade per­feita, mas em Cuba nin­guém dorme na rua e nin­guém passa fome… Cri­tica-se muito Cuba por causa dos «Di­reitos Hu­manos», mas o pri­meiro di­reito hu­mano que se deve res­peitar é o di­reito a uma vida digna e veja-se quantos po­bres há no mundo, quanta fome.

Como vê Cuba a so­li­da­ri­e­dade que des­perta em todo o mundo?

Agra­de­cemo-la imen­sa­mente, até porque muitas vezes ela ma­ni­festa-se em con­textos muito di­fí­ceis. Ela diz-nos que não es­tamos sós! O apoio que re­ce­bemos re­vela um en­ten­di­mento muito grande sobre a re­a­li­dade do nosso país. Temos amigos em todo o mundo, pes­soas que apoiam so­li­da­ri­a­mente o nosso pro­cesso e as nossas causas, como a do me­nino Elián ou dos nossos cinco he­róis cu­banos presos nos Es­tados Unidos da Amé­rica.

Temos 2045 or­ga­ni­za­ções de so­li­da­ri­e­dade em 152 países, in­cluindo seis em Por­tugal, cujo papel é muito ac­tivo no apoio a Cuba. Aqui houve muita gente so­li­dária com Cuba desde o início, como Vasco Gon­çalves, Rosa Cou­tinho, José Ca­sa­nova, José Sa­ra­mago e muitos ou­tros. Mas essa so­li­da­ri­e­dade ex­primiu-se também nou­tros países eu­ro­peus, na Amé­rica La­tina, Ásia e até em África, com todas as di­fi­cul­dades que en­frenta.

Cuba também apoia muito os povos afri­canos…

Sim, hoje mais de cinco mil co­la­bo­ra­dores cu­banos prestam os seus ser­viços no con­ti­nente afri­cano, nos sec­tores de saúde, edu­cação, cons­trução, des­porto e agri­cul­tura, entre ou­tros. Na Guiné-Bissau temos um pro­to­colo tri­par­tido (Cuba, Guiné-Bissau, Por­tugal), em que os nossos mé­dicos tra­ba­lham nos hos­pi­tais e cen­tros de saúde do país e, ao mesmo tempo, formam mé­dicos lo­cais. si­mul­ta­ne­a­mente, quase nove mil es­tu­dantes afri­canos es­tudam em di­versos cen­tros edu­ca­tivos no nosso país.

Em breves pa­la­vras, como re­su­miria o le­gado de 60 anos de re­vo­lução em Cuba?

Desde logo, con­ti­nui­dade his­tó­rica – desde o início das guerras pela in­de­pen­dência, há 150 anos, pela li­ber­tação, con­cluída no 1.º de Ja­neiro de 1959, pela con­so­li­dação do nosso sis­tema so­ci­a­lista. E con­ti­nui­dade de ideá­rios his­tó­ricos, como os de José Marti e de Fidel Castro, im­pres­cin­dí­veis na nossa his­tória.

Têm sido 60 anos de uni­dade, de muito es­forço in­terno e de apoio aos povos do mundo, de en­trega a uma causa hu­mana de dig­ni­dade do homem. É um pro­jecto mo­desto, mas com muita alma e co­ração. Ti­vemos de en­frentar agres­sões, o blo­queio, o en­ve­ne­na­mento de cul­turas e a in­tro­dução de pragas e do­enças, os ata­ques a na­vios de pesca, os aten­tados em aviões e ho­téis. O povo cu­bano passou por muito nestes anos. Emo­ciono-me ao falar nisto, mas ao con­trário de ou­tros, os di­plo­matas cu­banos são parte do povo, vivem como o povo, en­frentam as mesmas di­fi­cul­dades. É por isso que de­fen­demos tão afin­ca­da­mente a nossa re­vo­lução.

Mais de 7 mi­lhões de cu­banos
par­ti­ci­param no de­bate cons­ti­tu­ci­onal

É re­co­nhe­cido que os pro­cessos cons­ti­tu­ci­o­nais são, em Cuba, muito par­ti­ci­pados. Qual foi o nível de par­ti­ci­pação desta vez?

O de­bate pú­blico ter­minou a 15 de No­vembro e as pro­postas foram en­ca­mi­nhadas para a co­missão que chefia a re­visão cons­ti­tu­ci­onal, li­de­rada pelo Se­cre­tário-geral do Par­tido Co­mu­nista de Cuba, Raul Castro. Após a vo­tação na As­sem­bleia Na­ci­onal do Poder Po­pular, a pro­posta cons­ti­tu­ci­onal será su­jeita a re­fe­rendo po­pular vol­tando de­pois à As­sem­bleia para apro­vação final.

Ti­vemos a par­ti­ci­pação de mais de sete mi­lhões de pes­soas nos de­bates po­pu­lares, mais de 133 mil reu­niões nos lo­cais de tra­balho, nas uni­ver­si­dades, nos campos, nos bairros. Daí saíram 783 174­pro­postas de emenda, acres­cento e eli­mi­nação ou a ex­pressão de dú­vidas.

Que al­te­ra­ções pro­pu­seram os cu­banos? Que opi­niões ex­pressam da pro­posta de Cons­ti­tuição?

Só re­la­ti­va­mente a oito pa­rá­grafos da Cons­ti­tuição não houve pro­postas. O nosso povo é culto, ins­truído e po­li­ti­ca­mente muito ac­tivo. De­bateu-se muito o con­ceito de ca­sa­mento, entre «duas pes­soas» e não entre «um homem e uma mu­lher» e também sobre as li­mi­ta­ções dos pe­ríodos de man­datos, sobre o papel do tra­balho na so­ci­e­dade, sobre a as­sis­tência ju­rí­dica desde o mo­mento da prisão,entre ou­tras ques­tões.

Grandes ca­deias me­diá­ticas di­fun­diram a ideia de «aban­dono do co­mu­nismo»...

Quando não se lê as coisas até ao fim corre-se o risco de errar… No an­te­pro­jecto de Cons­ti­tuição re­a­fir­mava-se que o Par­tido Co­mu­nista de Cuba é a força po­lí­tica di­ri­gente da so­ci­e­dade cu­bana. Com este ar­tigo, um dos pri­meiros, não ha­veria lugar a dú­vidas. Além disso, logo no preâm­bulo, quando se re­fere que «so­mente no so­ci­a­lismo (e no co­mu­nismo) o ser hu­mano atinge sua plena dig­ni­dade», o co­mu­nismo foi in­cor­po­rado du­rante o se­gundo Pe­ríodo Or­di­nário de Ses­sões da IX Le­gis­la­tura.

O que apon­tamos é a con­so­li­dação do so­ci­a­lismo, um so­ci­a­lismo cu­bano com ca­rac­te­rís­ticas pró­prias. Os povos tem his­tó­rias e cul­turas di­fe­rentes e o so­ci­a­lismo tem, em cada país, ca­rac­te­rís­ticas pró­prias. Mas o co­mu­nismo é o ob­jec­tivo final.

Cuba de­fende a uni­dade la­tino-ame­ri­cana e ca­ri­benha

Como ob­serva Cuba a si­tu­ação na Amé­rica La­tina, com o cerco eco­nó­mico e di­plo­má­tico à Ve­ne­zuela, a de­ses­ta­bi­li­zação da Ni­ca­rágua, a vi­tória da ex­trema-di­reita no Brasil…

Há uma nova si­tu­ação na re­gião pro­vo­cada pela in­tenção das oli­gar­quias em manter a sua su­pre­macia eco­nó­mica, apoi­adas pelos EUA. A Amé­rica La­tina é a re­gião mais de­si­gual do mundo. Sempre que, na his­tória, a ri­queza criada deixa de ir para os bolsos de uns poucos e é usado para re­solver os pro­blemas dos povos houve re­acção das oli­gar­quias.

Cuba mantém o seu apoio aos go­vernos pro­gres­sistas da Ve­ne­zuela e Ni­ca­rágua, foram de­mo­cra­ti­ca­mente eleitos, por uma questão ética, his­tó­rica, hu­mana. É muito di­fícil go­vernar com blo­queios, san­ções, per­se­guição fi­nan­ceira e de­ses­ta­bi­li­zação in­terna fo­men­tada a partir do ex­te­rior.

Os pro­cessos de in­te­gração re­gi­onal podem estar ame­a­çados?

Desde Marti e Bo­livar até hoje que a re­vo­lução na Amé­rica La­tina está in­ter­li­gada. Cuba vai con­ti­nuar a bater-se pela in­te­gração e uni­dade la­tino-ame­ri­canas e pela ma­nu­tenção da paz na re­gião. Essa in­te­gração deve res­peitar a so­be­rania e in­de­pen­dência dos povos, as suas di­fe­renças po­lí­ticas, cul­tu­rais e lin­guís­ticas.




Mais artigos de: Temas

Pobreza: exploração e hipocrisia

PRO­POSTAS Se­gundo a ONU, mi­lhares de seres hu­manos, no­me­a­da­mente cri­anças, morrem todos os dias por não terem acesso aos avanços da ci­ência na área da Saúde. A si­tu­ação de po­breza em que se en­con­tram não lhes per­mite pagar os ser­viços de saúde, a co­meçar pelos me­di­ca­mentos.