Há 80 anos: a crise do capitalismo, o nazi-fascismo e a Segunda Guerra Mundial

Gustavo Carneiro

EFEMÉRIDE Evocar o início da Se­gunda Guerra Mun­dial, há 80 anos, é uma oca­sião pri­vi­le­giada para lem­brar o que es­teve na origem da­quele que foi o mais brutal con­flito mi­litar da His­tória e reflectir sobre os pe­rigos que a ac­tual si­tu­ação in­ter­na­ci­onal en­cerra.

As po­tên­cias ca­pi­ta­listas foram cúm­plices do avanço do na­zismo na Ale­manha e da sua cres­cente agres­si­vi­dade

Para com­pre­ender ca­bal­mente os mo­tivos que le­varam à Se­gunda Guerra Mun­dial (na qual, nunca é de­mais lem­brar, mor­reram mais de 50 mi­lhões de seres hu­manos) é ne­ces­sário ver muito mais além do que a sim­ples «lou­cura» de Hi­tler e dos seus mais di­rectos se­gui­dores. Esta tese sim­plista, aliás ac­tu­al­mente muito em voga em li­vros, filmes e do­cu­men­tá­rios, serve na per­feição aos que hoje, pela força eco­nó­mica e mi­litar, pro­curam apo­derar-se de mer­cados, fontes de ma­té­rias-primas e ter­ri­tó­rios de im­por­tância geo-es­tra­té­gica, obli­terar a so­be­rania de países e deter o de­sen­vol­vi­mento de quem lhe possa fazer frente.

As suas ori­gens ra­dicam mais fundo, nos in­te­resses do ca­pital mo­no­po­lista, na pró­pria na­tu­reza do sis­tema ca­pi­ta­lista na sua fase im­pe­ri­a­lista, cujas ca­rac­te­rís­ticas Lé­nine ge­ni­al­mente des­vendou: a ex­pansão con­tínua do ca­pital, o de­sen­vol­vi­mento de­si­gual do ca­pi­ta­lismo, a re­di­visão do mundo con­tri­buem para a ex­plicar, assim como à Pri­meira Guerra Mun­dial (1914-1918). No caso con­creto do con­flito ini­ciado no início de Se­tembro de 1939, pe­saram fac­tores como as con­di­ções im­postas aos ven­cidos pelas po­tên­cias triun­fantes da Pri­meira Guerra Mun­dial, a Grande De­pressão e o re­curso ao nazi-fas­cismo como tropa de choque no es­ma­ga­mento do mo­vi­mento ope­rário e do as­censo re­vo­lu­ci­o­nário na sequência do triunfo da Re­vo­lução de Ou­tubro e da cons­ti­tuição da União So­vié­tica, pri­meiro Es­tado so­ci­a­lista do mundo.

O Tra­tado de Ver­sa­lhes (como os sub­se­quentes Acordos de Washington) impôs pe­na­li­za­ções se­veras à Ale­manha e aos seus ali­ados, es­ma­gados eco­nó­mica e mi­li­tar­mente e pri­vados das suas co­ló­nias, e não foi pre­ciso es­perar para que o status quo im­pe­ri­a­lista de Ver­sa­lhes fosse de­sa­fiado – pelas po­tên­cias der­ro­tadas e hu­mi­lhadas na Pri­meira Guerra Mun­dial e por ou­tras, que es­ti­veram do lado dos ven­ce­dores mas não be­ne­fi­ci­aram com a re­par­tição dos des­pojos.

Ao longo da dé­cada de 30, Japão, Itália e Ale­manha de­sen­ca­de­aram um vasto con­junto de agres­sões mi­li­tares na Ásia, África e Eu­ropa, ao mesmo tempo que se acen­tuava a mi­li­ta­ri­zação e se ve­ri­fi­cava uma im­pe­tuosa cor­rida aos ar­ma­mentos, com a cum­pli­ci­dade das res­tantes po­tên­cias ca­pi­ta­listas. Abria-se assim o ca­minho para uma nova guerra…

As­censão im­pe­tuosa…
e fi­nan­ciada

A as­censão do nazi-fas­cismo, que está longe de ter sido uma ex­clu­si­vi­dade ger­mâ­nica, ex­plica-se na Ale­manha pelas se­veras e hu­mi­lhantes con­di­ções im­postas pelo Tra­tado de Ver­sa­lhes e, também, pela Grande De­pressão es­po­le­tada pelo crash da Bolsa de Nova Iorque, em Ou­tubro de 1929. Es­tando a re­cu­pe­ração da sua eco­nomia muito de­pen­dente, nessa al­tura, dos em­prés­timos norte-ame­ri­canos, os efeitos foram dra­má­ticos: entre 1929 e 1932 a pro­dução caiu 50 por cento, as fa­lên­cias su­ce­deram-se e o de­sem­prego atingiu, em fi­nais de 1930, seis mi­lhões de tra­ba­lha­dores. O dis­curso na­ci­o­na­lista, ra­cista e xe­nó­fobo que Hi­tler e os seus cor­re­le­gi­o­ná­rios vi­nham fa­zendo sem grande su­cesso desde o início da dé­cada de 20 tinha, agora, pasto fértil para crescer entre os de­ses­pe­rados.

Mas há mo­tivos mais fundos – e de­ci­sivos – a ex­plicar o im­pe­tuoso cres­ci­mento do par­tido nazi em fi­nais dos anos 20: o apoio po­lí­tico e fi­nan­ceiro que, a partir de então lhe foi pres­tado por am­plos e cres­centes sec­tores do grande ca­pital alemão, atraídos pelo seu pro­grama de ex­pansão ter­ri­to­rial e pela sua brutal acção an­ti­co­mu­nista, anti-sin­dical e an­ti­de­mo­crá­tica. A marcha de Hi­tler até ao poder ab­so­luto foi acom­pa­nhada – e pos­si­bi­li­tada – pelo cres­cente es­trei­ta­mento dos laços com os mo­no­pó­lios ale­mães, que con­ti­nu­arão até ao final da guerra.

A ca­rac­te­ri­zação da In­ter­na­ci­onal Co­mu­nista, para quem o fas­cismo era a «di­ta­dura ter­ro­rista aberta dos ele­mentos mais re­ac­ci­o­ná­rios, chau­vi­nistas e im­pe­ri­a­listas do ca­pital fi­nan­ceiro», re­velou-se ri­go­ro­sa­mente acer­tada: foram os in­dus­triais e ban­queiros ale­mães que fi­nan­ci­aram o es­forço de guerra nazi e be­ne­fi­ci­aram dos novos ter­ri­tó­rios con­quis­tados e do tra­balho es­cravo pres­tado pelos pri­si­o­neiros nos campos de con­cen­tração.

Com di­fe­renças e par­ti­cu­la­ri­dades entre países, também em Itália, Por­tugal, Hun­gria, Bul­gária, Áus­tria ou Es­panha, o fas­cismo foi a fór­mula en­con­trada pelas classes do­mi­nantes para manter e re­forçar o seu poder.

Co­la­bo­ração e re­sis­tência

A Se­gunda Guerra Mun­dial teve início ofi­cial no início de Se­tembro de 1939, na sequência da de­cla­ração de guerra franco-bri­tâ­nica que se su­cedeu à in­vasão da Po­lónia pelos exér­citos nazis. Porém, du­rante quase nove meses não se com­bateu no con­ti­nente eu­ropeu, onde as forças nazis, em­bora fran­ca­mente mi­no­ri­tá­rias, avan­çaram para Leste quase sem opo­sição. Esta que ficou co­nhe­cida por es­tranha guerra mais não foi do que a con­ti­nu­ação da po­lí­tica an­te­rior dos go­vernos francês e bri­tâ­nico, de­ter­mi­nada por in­te­resses de classe ci­osos de em­purrar a fúria ex­pan­si­o­nista nazi-fas­cista contra a União So­vié­tica.

A com­pla­cência de­mons­trada pe­rante a re­mi­li­ta­ri­zação alemã, a re­cusa de todas as pro­postas so­vié­ticas vi­sando a de­fesa dos países ame­a­çados pelo nazi-fas­cismo, o aban­dono da Re­pú­blica es­pa­nhola às mãos dos fa­lan­gistas (1936 a 1939), o Acordo de Mu­nique (1938) que en­tregou a Hi­tler os Su­detas e ditou o des­man­te­la­mento e ocu­pação da Che­cos­lo­vá­quia, são apenas al­gumas das ver­go­nhosas pá­ginas do co­la­bo­ra­ci­o­nismo bri­tâ­nico, francês e norte-ame­ri­cano com as pre­ten­sões dos nazi-fas­cistas. Hi­tler, porém, trocou-lhes as voltas, pre­fe­rindo co­meçar por con­so­lidar a frente oci­dental, der­ro­tando pra­ti­ca­mente sem opo­sição os seus con­cor­rentes im­pe­ri­a­listas.

Só após estar do­mi­nada grande parte da Eu­ropa con­ti­nental é que os nazi-fas­cistas con­cen­traram o es­sen­cial do seu po­derio mi­litar na in­vasão da União So­vié­tica, ini­ciada a 22 de Junho de 1941. Mas aquele que era o ob­jec­tivo cen­tral da Ale­manha nazi trans­formou-se no seu fim: a re­sis­tência he­róica da URSS – do seu povo, do Exér­cito Ver­melho, do Par­tido Co­mu­nista – foi mais forte que a bar­bárie. As vi­tó­rias so­vié­ticas em Mos­covo, Le­ni­ne­grado, Sta­li­ne­grado e Kursk vi­raram o curso da guerra – muito antes das forças anglo-ame­ri­canas terem de­sem­bar­cado na Nor­mandia e aberto, com anos de atraso, a se­gunda frente – e ani­maram a re­sis­tência po­pular an­ti­fas­cista na Eu­ropa e na Ásia. O nazi-fas­cismo tinha os dias con­tados: a der­rota final ocorreu em Berlim, às mãos do Exér­cito Ver­melho, em Maio de 1945.

Factos e nú­meros

  • Grandes em­presas, como a IBM, a Volks­vagen, a Krupp ou a Bayer fi­nan­ci­aram e apoi­aram os nazis.
  • Bri­tâ­nicos e fran­ceses per­mi­tiram a ocu­pação alemã do Reno, a agressão à Re­pú­blica es­pa­nhola, a ane­xação da Áus­tria e a in­vasão da Che­cos­lo­vá­quia.
  • O Pacto de Não Agressão entre Ale­manha e a URSS só foi ce­le­brado após terem fa­lhado todas as ini­ci­a­tivas so­vié­ticas junto de ou­tros países – como a França e o Reino Unido – para isolar e deter o avanço do nazi-fas­cismo e quando foi claro que as po­tên­cias ca­pi­ta­listas oci­den­tais apos­tavam na agressão nazi-fas­cista contra a URSS.
  • Em Se­tembro de 1939, após a agressão nazi à Po­lónia, 110 di­vi­sões fran­cesas e bri­tâ­nicas man­ti­veram-se inac­tivas, a Oci­dente, pe­rante 25 di­vi­sões alemãs.
  • A classe di­ri­gente fran­cesa ca­pi­tulou ver­go­nho­sa­mente pe­rante Hi­tler, en­tre­gando-lhe dois terços do ter­ri­tório, fi­cando o res­tante sob o re­gime co­la­bo­ra­ci­o­nista de Vichy.
  • A URSS com­bateu pra­ti­ca­mente so­zinha contra os nazi-fas­cistas de Junho de 1941 a Junho de 1944.
  • Quando se dá o de­sem­barque anglo-ame­ri­cano na Nor­mandia (o Dia D), em Junho de 1944, já a União So­vié­tica li­ber­tara pra­ti­ca­mente todo o seu ter­ri­tório e ini­ciara a marcha li­ber­ta­dora rumo a Berlim.
  • O nazi-fas­cismo e a guerra cei­faram a vida a mais de 50 mi­lhões de pes­soas, mais de 20 mi­lhões ci­da­dãos so­vié­ticos.


Aprender com a His­tória
para que a bar­bárie ja­mais se re­pita

O PCP emitiu no dia 31 uma nota in­ti­tu­lada Nos 80 anos do início da Se­gunda Guerra Mun­dial – Lutar pela paz e o de­sar­ma­mento!, na qual as­sume que «as li­ções de há oito dé­cadas não podem ser ig­no­radas nem es­que­cidas». Co­meça por lem­brar que o fas­cismo foi a ex­pressão «mais vi­o­lenta e brutal dum ca­pi­ta­lismo em pro­funda crise eco­nó­mica» e que o seu as­censo foi «ali­men­tado e apoiado pelo ca­pital mo­no­po­lista».

Ora, acres­centa, na ac­tu­a­li­dade o ca­pi­ta­lismo en­frenta também o apro­fun­da­mento da sua crise es­tru­tural, «para a qual não en­contra so­lução»: es­pe­lham-no as «múl­ti­plas con­tra­di­ções e cli­va­gens», as guerras eco­nó­micas e mi­li­tares, o ataque aos di­reitos dos tra­ba­lha­dores e dos povos, o des­prezo pelo di­reito in­ter­na­ci­onal e o rasgar de im­por­tantes acordos por parte da Ad­mi­nis­tração norte-ame­ri­cana de Trump, desde logo o acordo nu­clear sobre o Irão e o Tra­tado de Forças Nu­cle­ares de Al­cance In­ter­médio (INF).

Porém, re­alça, a «via da agressão e da guerra não co­meçou com Trump, nem é ca­rac­te­rís­tica ex­clu­siva do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano». A «es­piral de ar­bí­trio e vi­o­lência que fez o seu ca­minho de de­vas­tação e morte até aos nossos dias» foi ini­ciado há 20 anos, quando a ad­mi­nis­tração Clinton, dos EUA, e a so­cial-de­mo­cracia eu­ro­peia «vi­o­laram aber­ta­mente o di­reito in­ter­na­ci­onal com a guerra da NATO contra a Ju­gos­lávia». Se­guiram-se Afe­ga­nistão, Iraque, Líbia ou Síria…

O PCP de­nuncia ainda o apoio dos EUA e da UE, em di­versos pontos do mundo, a forças de ex­trema-di­reita.

Prin­cí­pios contra o abismo

Se a Se­gunda Guerra Mun­dial foi de­sen­ca­deada pelas po­tên­cias im­pe­ri­a­listas que vi­savam re­de­finir pela força a par­tilha do pla­neta, hoje o «pe­rigo prin­cipal de guerra provém das ve­lhas po­tên­cias im­pe­ri­a­listas – com des­taque para os EUA, mas também eu­ro­peias – que querem pre­servar pela força uma do­mi­nação po­lí­tica que cada vez menos cor­res­ponde à re­a­li­dade eco­nó­mica mun­dial, em ace­le­rada trans­for­mação». É esta, para o PCP, a razão de fundo da «pe­ri­go­sís­sima es­ca­lada mi­li­ta­rista, de agressão e pro­vo­cação contra qual­quer país e povo que afirme a sua so­be­rania e di­reitos e de con­fron­tação contra a China e a Rússia».

O ca­pi­ta­lismo em crise, alerta, ameaça «con­duzir de novo a Hu­ma­ni­dade para o au­to­ri­ta­rismo e a guerra que, na era nu­clear, re­pre­sen­taria uma ca­tás­trofe pla­ne­tária». Assim, é «im­pe­ra­tivo travar a cor­rida para o abismo», tal como é pos­sível «cortar o passo aos fau­tores do fas­cismo (com ve­lhas e novas vestes) e da guerra».

Mas para tal, sus­tentam os co­mu­nistas, Por­tugal tem de se re­cusar a co­la­borar com o «be­li­cismo agres­sivo dos EUA/​NATO/​UE» e o seu go­verno tem de «cum­prir as suas obri­ga­ções cons­ti­tu­ci­o­nais e tomar par­tido ac­tivo pelo res­peito da Carta da ONU e dos prin­cí­pios con­sa­grados do Di­reito In­ter­na­ci­onal». Urge, ainda, re­jeitar a cor­rida aos ar­ma­mentos da NATO e a mi­li­ta­ri­zação da UE, re­cu­sando au­mentos de des­pesas mi­li­tares, a des­truição dos tra­tados de de­sar­ma­mento ou a mi­li­ta­ri­zação do es­paço e a as­si­na­tura do Tra­tado pela Proi­bição das Armas Nu­cle­ares. Por­tugal tem ainda de ser «so­li­dário com todos os povos que re­sistem às agres­sões, sub­ver­sões e guerras do im­pe­ri­a­lismo, como na Ve­ne­zuela, na Síria ou na Pa­les­tina».

Quanto aos tra­ba­lha­dores e aos povos, prin­ci­pais ví­timas da guerra, são também os «pro­ta­go­nistas ac­tivos desta luta para travar o passo aos par­ti­dá­rios da guerra e im­pedir que se re­pita a tra­gédia vi­vida no sé­culo pas­sado».




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