As linhas com se cose Santo Egídio

Jorge Messias

Factos são factos. Têm todos uma im­por­tância re­la­tiva mas não devem ser mi­ni­mi­zados. Porque, qual­quer que seja a sua di­mensão, tendem a apro­ximar-se de ou­tros factos para cri­arem novos sis­temas. Vem isto a pro­pó­sito do re­cente em­pe­nha­mento do Va­ti­cano na de­fesa da paz como so­lução para o con­flito ira­quiano. O si­lêncio da Cúria era de facto in­su­por­tável. A Igreja rompeu-o, agora que a guerra já está cla­ra­mente de­ci­dida. Em­bora seja evi­dente que o apa­relho di­plo­má­tico do Va­ti­cano é em todo o mundo o mundo o mais po­de­roso dos em­bai­xa­dores. Mas nos anos re­centes, en­quanto os pe­rigos se avo­lu­mavam na área do pe­tróleo, o Va­ti­cano não jogou na ba­lança o maior peso do seu poder. Pru­den­te­mente, falou na paz in­te­rior das almas e foi de­mons­trando sim­patia pelo lado ame­ri­cano. Uma po­sição flu­tu­ante que, ainda re­cen­te­mente, terá con­du­zido o car­deal-pa­tri­arca a jus­ti­ficar as po­si­ções be­li­cistas do go­verno por­tu­guês por re­sul­tarem, em sua opi­nião, de uma «di­nâ­mica de ali­anças». E foi, ao que pa­rece, jus­ta­mente nesse plano, que teve lugar há poucos dias na RTP2 e num es­paço «cul­tural», uma mesa-re­donda em que in­ter­vi­eram o laico dr. Mário So­ares; o pe­rito em hu­ma­ni­dades D. José Po­li­carpo; e o chefe da de­mo­cracia pa­ra­lela do Va­ti­cano e da Co­mu­ni­dade de Santo Egídio, prof. An­drea Ric­cardi. A Co­mu­ni­dade de Santo Egídio me­rece, aliás, duas li­nhas de apre­sen­tação. Até porque Ric­cardi tembém é con­se­lheiro do Papa e co­la­bo­rador ín­timo do car­deal Rat­zinger.

Santo Egídio mer­gulha as suas raízes no Mo­vi­mento Co­mu­nhão e Li­ber­tação-CL, or­ga­ni­zação ca­tó­lica ul­tra­fun­da­men­ta­lista li­de­rada, em Por­tugal, pelo p. João Se­abra. O CL foi criada em Itália (Milão), na dé­cada de 60, pelo padre be­ne­di­tino Luigi Guis­sano, membro do Opus Dei e gestor de uma im­por­tante casa edi­to­rial, a Mon­da­tori, logo a se­guir ad­qui­rida por Silvio Ber­lus­coni que a in­te­grou numa das suas «hol­dings». Pu­bli­ca­mente, o CL apre­sentou-se como o re­sul­tado de uma dis­si­dência do Opus Dei. Tempos pas­sados (uma de­zena de anos de­pois), a mesma me­to­do­logia foi uti­li­zada na cons­ti­tuição da Co­mu­ni­dade de Santo Egídio. Como re­acção aos cha­mados «des­vios de es­querda» da CL, um grupo de mi­li­tantes con­du­zido pelo prof. An­drea Ric­cardi, da Uni­ver­si­dade de Roma, aban­donou o mo­vi­mento e ins­talou-se numa área si­tuada entre a po­lí­tica e a re­li­gião. Ve­ri­ficou-se, então, uma im­por­tante re­dis­tri­buição das ta­refas só­ci­o­ca­ri­ta­tivas da Igreja, com base na cres­cente im­por­tância re­co­nhe­cida à es­pe­ci­fi­ci­dade pas­toral: a Co­mu­ni­dade de Santo Egídio ficou, a partir de então, com uma au­to­ri­dade de­ter­mi­nante nas pas­to­rais da Ju­ven­tude, da Acção So­cial e na con­dução das di­plo­ma­cias pa­ra­lelas do Va­ti­cano. Por di­plo­macia pa­ra­lela, en­tende-se uma prá­tica que é normal na vida ecle­siás­tica: o poder po­lí­tico da Igreja afirma-se se­gundo uma dada linha de va­lores en­quanto que, si­mul­ta­ne­a­mente, or­ga­ni­za­ções con­fes­si­o­nais acima de qual­quer sus­peita pro­movem, pa­ra­le­la­mente, pres­sões e in­fluên­cias con­trá­rias às da linha ofi­cial do Va­ti­cano mas iden­ti­fi­cadas com os mesmos ob­jec­tivos. O mé­todo per­mite à Igreja alargar o seu campo de in­ter­venção e, ao mesmo tempo, ga­rante-lhe uma grande ma­le­a­bi­li­dade de acção. «Somos a di­plo­macia pa­ra­lela do Va­ti­cano!», de­claram os di­plo­matas-ca­te­quistas de Ric­cardi, já cé­le­bres pelos êxitos al­can­çados nas me­di­a­ções de con­flitos como os da Ar­gélia, Mo­çam­bique, Gua­te­mala, Lí­bano, Bu­rundi ou nas in­trigas do poder que abriram bre­chas nos re­gimes so­ci­a­listas. Com Santo Egídio chega, pri­meiro, a paz e a re­con­ci­li­ação; logo a se­guir, o FMI, a de­pen­dência po­lí­tica e eco­nó­mica, as im­pi­e­dosas re­vi­sões cons­ti­tu­ci­o­nais, o aban­dono dos ideais. Ou seja, avança a glo­ba­li­zação ca­pi­ta­lista e o im­pe­ri­a­lismo po­lí­tico e re­li­gioso.

Não é cer­ta­mente por acaso que Santo Egídio acentua, neste pre­ciso mo­mento de crises, a sua pre­sença em Por­tugal. Todos os nossos olhares se fixam em Bagdad. A paz e a guerra não são já sim­ples jogos ver­bais. O povo di­vide-se entre a de­cepção e a es­pe­rança da mu­dança. Re­for­cemos a nossa re­sis­tência. A de­fesa da paz está ao nosso al­cance. Dizem os ca­ma­radas norte-ame­ri­canos: «Não à guerra. Sim à luta de classes!». Cal­ma­mente re­cor­demos En­gels: «Toda a so­ci­e­dade velha trans­porta nos seus flancos uma nova so­ci­e­dade!»



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