Ficar sem nada
Terminada, ao menos por agora, a onda de incêndios que devastou o País, já seria possível, entre outras coisas, saber quantas casas arderam por esse Portugal fora, quantos portugueses ficaram à mercê da solidariedade dos restantes, talvez dos dinheiros que provenientes um pouco de todo o lado se foram amealhando naquela conta bancária que a TV tem anunciado. Já seria possível, enfim, saber quantos portugueses ficaram sem nada, eles que alguma coisinha tinham conseguido ter ao cabo de vidas inteiras de trabalho, de sonhos e decepções, de contratempos superados. É claro que alguns dos que viram as suas casas atingidas, que foram portanto feridos por aquela desgraça que durante dias e dias encheu os ecrãs dos nossos televisores, não perderam tudo. Ou porque a devastação dos seus bens foi sustada a meio da destruição, ou porque havia outros bens em áreas não atingidas, ou porque há patrimónios que não ardem quando o fogo devasta as florestas. Também esses foram injustamente feridos pelo desastre, sem dúvida, mas não é nesses que estou a pensar. Refiro-me aos que, como vimos alguns deles na televisão, ficaram eles próprios tão devastados, tão vazios de tudo, como algumas das encostas que o fogo percorreu e tornou cinzentas, mortas, sem uma única folhinha verde onde uma semente de vida se pudesse refugiar.
Eram gente riscada do pequeno mundo das esperanças quotidianas que é afinal o grande mundo em que quase todos nós vamos custosamente sobrevivendo. E eram gente inocente, isto é, que não tinha feito nada para que aquele holocausto sobreviesse e se lançasse sobre a sua casa. Não faço a menor ideia de quanto tempo lhes vai chegar ás mãos, isto é, vai chegar às suas vidas, os apoios que o senhor primeiro-ministro repetidamente apregoou, que nisto de apregoar apoios é ele muito lesto, assim o fosse noutros casos. Começo, aliás, por me sentir terrivelmente céptico no que diz respeito ao volume e eficácia de tais apoios: ouvi na TV uns números por alto, provavelmente mal ouvidos, que me fizeram sentir envergonhado, mas quero acreditar que esse aspecto não passou de mais um «erro de comunicação» de entre tantos que por aí há. Pelo contrário, quero acreditar que ao menos a esses que ficaram sem nada os apoios hão-de chegar rapidamente e suficientes, antes que algum dos devastados opte por acabar com uma existência que terá perdido todo o sentido. No Alentejo, sei de uma tristíssima tradição que liga homem e árvores numa espécie de último acto de camaradagem entre eles. Noutros lugares do País não sei como é, mas espero que o senhor primeiro-ministro faça ou mande fazer o que é preciso para evitar desenlaces macabros mas, na verdade, adequados.
Outros lugares, outras casas
Há-de ter sido por ter ouvido falar em casas destruídas que me lembrei dos fogos em Portugal e dos seus efeitos quando a Euronews me dava notícias da Palestina, e notícias péssimas. Foi o caso de, mesmo com uma suposta trégua em vigor, os israelitas terem abatido um líder da resistência palestiniana, vulgo «terrorista», e, por sua vez, os palestinianos terem ripostado com dois ataques suicidas. É claro que os autores destes dois atentados morreram, se é que pelo menos num dos casos não foi o autor o único a morrer imediatamente. Enfim, foi afinal mais um episódio de uma insuportável rotina. E terá sido também uma situação de rotina o que aconteceu a seguir: blindados israelitas penetraram em zona não ocupada e destruíram as casas onde viviam as famílias dos autores dos atentados. Segundo a notícia, viviam não eles próprios, mas os pais, os irmãos, os sobrinhos. E terão destruído, ainda, numa espécie de cobrança excessiva por precaução, mais umas cinco casas de palestinianos que não eram da família mas eram palestinianos, razão suficiente, viviam em campos de refugiados, circunstância agravante, e quase certamente odeiam os israelitas.
Com as casas destruídas, aquela gente ficou, também ela, sem nada., ali, não foi um acto da natureza que reduziu a pó as existências de quem ali morava e decerto ao longo dos anos tinha feito o possível por melhorar a casa, alindá-la um pouco, reforçá-la em qualquer ponto já desgastado pelo tempo e pelo uso. A reportagem da Euronews nem sequer mostrou algum dos que ali viviam, limitou-se a falar deles, e depressinha que há outras notícias a dar. Fico a pergunta-me se terão apoios. E fico a fazer outras perguntas: se, perante a notícia, não é evidente que o governo de Israel não quer acabar com o terrorismo, mas sim dar-lhe novas razões usando a injustiça violenta como um combustível lançado sobre a fogueira da invasão e ocupação. Reflicto que nem as SS chegaram a tanto. E que o mundo livre e democrático assiste a isto, impávido ou distraído, e se eventualmente perguntado responde que os palestinianos têm na verdade mau feitio. O que, pelo menos, ninguém se lembra de dizer dos que o fogo em Portugal também transformou numa espécie de náufragos que perderam tudo.
Eram gente riscada do pequeno mundo das esperanças quotidianas que é afinal o grande mundo em que quase todos nós vamos custosamente sobrevivendo. E eram gente inocente, isto é, que não tinha feito nada para que aquele holocausto sobreviesse e se lançasse sobre a sua casa. Não faço a menor ideia de quanto tempo lhes vai chegar ás mãos, isto é, vai chegar às suas vidas, os apoios que o senhor primeiro-ministro repetidamente apregoou, que nisto de apregoar apoios é ele muito lesto, assim o fosse noutros casos. Começo, aliás, por me sentir terrivelmente céptico no que diz respeito ao volume e eficácia de tais apoios: ouvi na TV uns números por alto, provavelmente mal ouvidos, que me fizeram sentir envergonhado, mas quero acreditar que esse aspecto não passou de mais um «erro de comunicação» de entre tantos que por aí há. Pelo contrário, quero acreditar que ao menos a esses que ficaram sem nada os apoios hão-de chegar rapidamente e suficientes, antes que algum dos devastados opte por acabar com uma existência que terá perdido todo o sentido. No Alentejo, sei de uma tristíssima tradição que liga homem e árvores numa espécie de último acto de camaradagem entre eles. Noutros lugares do País não sei como é, mas espero que o senhor primeiro-ministro faça ou mande fazer o que é preciso para evitar desenlaces macabros mas, na verdade, adequados.
Outros lugares, outras casas
Há-de ter sido por ter ouvido falar em casas destruídas que me lembrei dos fogos em Portugal e dos seus efeitos quando a Euronews me dava notícias da Palestina, e notícias péssimas. Foi o caso de, mesmo com uma suposta trégua em vigor, os israelitas terem abatido um líder da resistência palestiniana, vulgo «terrorista», e, por sua vez, os palestinianos terem ripostado com dois ataques suicidas. É claro que os autores destes dois atentados morreram, se é que pelo menos num dos casos não foi o autor o único a morrer imediatamente. Enfim, foi afinal mais um episódio de uma insuportável rotina. E terá sido também uma situação de rotina o que aconteceu a seguir: blindados israelitas penetraram em zona não ocupada e destruíram as casas onde viviam as famílias dos autores dos atentados. Segundo a notícia, viviam não eles próprios, mas os pais, os irmãos, os sobrinhos. E terão destruído, ainda, numa espécie de cobrança excessiva por precaução, mais umas cinco casas de palestinianos que não eram da família mas eram palestinianos, razão suficiente, viviam em campos de refugiados, circunstância agravante, e quase certamente odeiam os israelitas.
Com as casas destruídas, aquela gente ficou, também ela, sem nada., ali, não foi um acto da natureza que reduziu a pó as existências de quem ali morava e decerto ao longo dos anos tinha feito o possível por melhorar a casa, alindá-la um pouco, reforçá-la em qualquer ponto já desgastado pelo tempo e pelo uso. A reportagem da Euronews nem sequer mostrou algum dos que ali viviam, limitou-se a falar deles, e depressinha que há outras notícias a dar. Fico a pergunta-me se terão apoios. E fico a fazer outras perguntas: se, perante a notícia, não é evidente que o governo de Israel não quer acabar com o terrorismo, mas sim dar-lhe novas razões usando a injustiça violenta como um combustível lançado sobre a fogueira da invasão e ocupação. Reflicto que nem as SS chegaram a tanto. E que o mundo livre e democrático assiste a isto, impávido ou distraído, e se eventualmente perguntado responde que os palestinianos têm na verdade mau feitio. O que, pelo menos, ninguém se lembra de dizer dos que o fogo em Portugal também transformou numa espécie de náufragos que perderam tudo.