Rendas: leis celeradas com um toque de classe

António Abreu (Membro da Comissão Política do PCP)
Na AR e na opinião pública tem estado em debate uma autorização legislativa cujo objectivo é retirar os habitantes que vivem há décadas nos bairros mais antigos da cidade para disponibilizar esses espaços a outras camadas com maior poder económico. E isso através da recepção dos fogos vagados por despejos ou por «indemnizações à padrinho» – das que se não podem recusar.

Esta é uma lei à medida da especulação e dos grupos económicos

Esses novos habitantes ou farão desses espaços habitação normal, ou esta será sazonal e para homens de negócios carentes de aplicar dinheiros de origem diversa ou ainda espaços comerciais de áreas compatibilizados com a destruição dos pisos térreos preexistentes.
Tudo tem sido servido com o enunciado de grandes princípios de respeito pelos mais idosos e carenciados, de mais célere reabilitação do edificado e de relançamento do mercado de arrendamento.
Porém as verdadeiras intenções já foram reveladas em pelo menos dois debates com alguma projecção pública. Primeiro na Assembleia da República, onde o conhecimento de causa da deputada Odete Santos, a sua remissão do debate para o terreno do concreto, desfez a demagogia dos representantes do governo. Depois num debate alargado na RTP, onde se lhe juntaram outros representantes de associações bem ligadas ao real e não ao verbalismo e em que o ministro foi ao tapete apesar das ajudas de dois professores universitários afastados das realidades de alguns aspectos ligados a estas alterações legislativas.
As ficções em que se tem baseado o argumentário governamental caíram por terra.
De facto, há mais de vinte anos que as rendas livres existem, sem fixação na prática dos valores de origem, com confirmação em dois momentos legislativos posteriores. Daí resultou que em Lisboa só cerca de dez por cento dos prédios considerados em mau estado foram construídos ou reabilitados depois desse momento inicial. A renda negociada e os contratos de arrendamento a prazo, introduzidos nesses momentos posteriores, não contribuíram para abrir o mercado de arrendamento. E é significativo que, por essa altura, tenham disparado a oferta de crédito para aquisição de casa própria e a actividade de construção de nova habitação privada que atingiu valores disparatados se tivermos em conta que houve momentos em que o valor desse crédito foi mesmo superior ao atribuído à actividade económica total nas empresas do país.
Eis, pois, os resultados cruzados de várias dinâmicas «de mercado»: forçar à compra face aos fogos devolutos não lançados no mercado de arrendamento ou a preços proibitivos neste, desenvolvimento da actividade imobiliária, articulação das empresas de construção civil com o capital financeiro.
A promessa de condicionar os aumentos das rendas aos certificados de habitabilidade, passados pelos municípios, em resultado da recuperação de fogos degradados não prevê, porém abranger os edifícios cujas licenças de utilização tenham menos de vinte anos e que assim se escapam seja qual for o estado em que se encontrem.

As reais preocupações

Quanto às preocupações sociais que estariam na origem desta «importante reforma», ficamos também conversados. Aos inquilinos de mais de sessenta e cinco anos esperam-nos rendas condicionadas quando tenham rendimentos inferiores a cinco salários mínimos nacionais. E vão ser os inquilinos mais carenciados que terão rendas condicionadas superiores aos valores de mercado para os fogos em que habitem. A renda condicionada não prevê contemplar o índice de vetustez (velhice do prédio), apesar de contemplar a área útil ou os quintais. E os mais numerosos entre os atingidos serão os inquilinos mais antigos, que vivam sós, em habitações com mais divisões que por isso são penalizados no cálculo do rendimento anual bruto corrigido. E não pode ser ignorado que o que se propõe também é que sejam estes inquilinos que, em geral, vivem em fogos que não respeitam normas actuais de segurança, irão ter o arrendamento suspenso e que pagarão, depois das obras daí decorrentes, uma renda condicionada.
Os subsídios quando das cessações unilaterais de contratos são uma compensação para quem se vê nessa contingência. Mas vão ser eles que permitirão aceder a outra habitação mesmo na periferia? E quando nem isso os inquilinos recebem quando são despejados? E quando o contrato a prazo com a renda condicionada não se transmite nem por morte nem sequer para o cônjuge?
E o que é que tudo isto tem a ver com o direito à habitação constitucional pelo qual se obriga o Estado?
A aquisição de casa própria continuará a ser a procura preferencial porque os fogos devolutos não vão entrar, sem mais, no mercado nem a reabilitação é obrigatória. Propostas que alterem esta situação iníqua, que se juntem ao recente projecto de lei do PCP serão bem-vindas. Mas não é para aí que apontam os objectivos dos grupos económicos que crescentemente determinam a política de habitação.
Em Lisboa, a política de habitação duma coligação de esquerda não conseguiu determinar de forma substancial as «tendências» do mercado. Acabaram-se com barracas e casas abarracadas e as populações foram realojadas em casas novas. Os bairros históricos foram reabilitados sistematicamente mas com fortes condicionantes externas a maiores ritmos. Alargou-se o recurso ao RECRIA e criou-se o REHABITA, o que acelerou o ritmo de obras particulares e municipais coercivas. A EPUL teve importante papel no objectivo de acesso em melhores condições a casas novas. Mas, nesse mesmo período, construíram-se em Lisboa mais de quinze mil fogos que ultrapassaram em muito as necessidades de reposição de fogos de todo não reabilitáveis.
O que o governo de Santana Lopes está a preparar é mais um factor de desestabilização social , com um toque de classe característico e coerente com outros seus tiques. Mais uma precarização e arbitrariedade no que poderiam ser direitos constitucionais em progressão mas que vão originar uma regressão assinalável de qualidade e outras condições de vida. Tudo em nome de lucros de grupos interligados com a banca que também acentuará a consignação dos rendimentos familiares a este tipo de endividamento.
A discussão pública, o esclarecimento de cada situação concreta, os protestos, são os caminhos a seguir para conter esta iniciativa celerada.


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