O comboio dos 927
Foi em Anguilême, França, no Verão de 1940, dois meses depois da capitulação francesa perante a «guerra relâmpago» de Hitler. Perto de um milhar de espanhóis que tinham procurado refúgio em França para escapar ao terror franquista que se seguira à vitória de El Caudillo foram presos pelos alemães, metidos em vagões para gado e enviados para o campo de extermínio de Mauthausen numa viagem de pesadelo que durou dezoito dias e dezoito noites. Eram exactamente novecentos e vinte e sete pessoas entre homens de idades diversas, velhos incluídos, mulheres e crianças, todos eles considerados perigosos comunistas e «inimigos do Reich». Já dias antes, no Parlamento francês, um deputado de Direita propusera: «...metemos essa gente num barco velho e afundamo-la no fundo do mar; os comunistas têm de ser todos liquidados!». Afinal, o destino dos que haviam olhado a França como porto de salvação iria ser ainda mais terrível: Mauthausen era um dos lugares infernais que o nazismo inventara e que hoje quase só são referidos quando se fala do extermínio dos judeus. Contudo, aqueles novecentos e vinte e sete não eram judeus, sobre eles apenas caía a suspeita de poderem ser comunistas, incluindo decerto as crianças e os bebés de colo que foram também enviados para Mauthausen. Tudo isto e muito mais nos foi contado por um documentário catalão datado de 2004 que o Canal História, distribuído por cabo, transmitiu há poucos dias. Entre imagens do pavor que Mauthausen era, testemunhos de suicídios colectivos que prisioneiros desesperados praticavam lançando-se de mãos dadas contra as vedações de arames electrificados, torturas e brutalidades sem nome, viram-se também imagens de crianças e ouviram-se relatos da sua tragédia. E, olhando-as, parece inevitável que nos ocorra uma pergunta: quantas ignoradas Annes Frank terão estado em Mauthausen incluídas naquele lote sinistro sem que ninguém se recorde? Fica a dúvida de o esquecimento resultar apenas do facto de nenhuma delas ter escrito um diário ou também de não serem judias. Pior: de pertencerem a famílias suspeitas de serem comunistas.
«- Isto não é Arqueologia!»
Após uma breve introdução/anúncio que precedeu a transmissão do documentário pelo Canal História, uma fugaz imagem sem conexão visível com o relato que iria seguir-se foi acompanhada por uma frase «off» que pareceu intrigante: «- Isto não é Arqueologia!». De qualquer modo, e não só por não encontrar outra explicação para a frase, creio que ela se referia de facto à tragédia dos novecentos e vinte e sete a quem coube o tristíssimo protagonismo de inaugurarem o primeiro comboio de presos destinados a um campo de extermínio. É que pensei nos que, por terem nascido bem depois do fim da Segunda Guerra Mundial e por talvez terem o vago sentimento de que só então a História começou, encaram a Guerra Civil de Espanha como um acontecimento arcaico que não tem nada a ver com o seu tempo. É uma pena que não entendam que o golpe franquista, a Guerra, o terror que a partir de 39 se prolongou durante décadas, são episódios de um combate que começou muito antes, que passou pela Revolução de Outubro e pela aliança capitalista que contra ela se formou, pela invasão e cerco da URSS, pela utilização de Hitler como um bicho feroz atiçado contra o comunismo, e que prossegue hoje nos quatro cantos do planeta, por vezes em lume brando e noutras vezes com um carácter feroz, que em versão «soft» está também no nosso quotidiano. Na verdade, com uma larga gama de variantes impostas pelas diferenças de lugar e de tempo, é a mesma guerra que prossegue. Por isso, aliás, é que os cânticos de vitória que o neocapitalismo hoje canta têm uma semelhança que pode ser verdadeiramente didáctica com outros cantos de triunfo entoados na Europa do primeiro quartel do século XIX, quando as monarquias restabelecidas ou transitoriamente vitoriosas julgavam ter erradicado definitivamente a semente revolucionária de 1789 e anos seguintes. Em verdade, a Guerra de Espanha e os crimes nazis são factos do nosso tempo, até do tempo de quem só nasceu anos depois, não são «Arqueologia». Por isso este documentário de 2004 que o Canal História transmitiu em 2007 e pudemos olhar com olhos de contemporaneidade. Por isso também o franquismo sobrevive hoje em Espanha sem Franco, tal como algum salazarismo não precisa de Salazar vivo para andar por aqui, entre nós, à espera de uma oportunidade. A guerra é mais ampla no tempo do que muitas vezes se supõe. Aliás, isso mesmo disse o próprio documentário quando referiu que «a Guerra-Fria veio revalorizar o regime de Franco». E, se a Guerra-Fria terminou e deu lugar ao mundo actual, dito unipolar, todos podemos sentir que a guerra contra o comunismo prossegue. E é a mesma.
«- Isto não é Arqueologia!»
Após uma breve introdução/anúncio que precedeu a transmissão do documentário pelo Canal História, uma fugaz imagem sem conexão visível com o relato que iria seguir-se foi acompanhada por uma frase «off» que pareceu intrigante: «- Isto não é Arqueologia!». De qualquer modo, e não só por não encontrar outra explicação para a frase, creio que ela se referia de facto à tragédia dos novecentos e vinte e sete a quem coube o tristíssimo protagonismo de inaugurarem o primeiro comboio de presos destinados a um campo de extermínio. É que pensei nos que, por terem nascido bem depois do fim da Segunda Guerra Mundial e por talvez terem o vago sentimento de que só então a História começou, encaram a Guerra Civil de Espanha como um acontecimento arcaico que não tem nada a ver com o seu tempo. É uma pena que não entendam que o golpe franquista, a Guerra, o terror que a partir de 39 se prolongou durante décadas, são episódios de um combate que começou muito antes, que passou pela Revolução de Outubro e pela aliança capitalista que contra ela se formou, pela invasão e cerco da URSS, pela utilização de Hitler como um bicho feroz atiçado contra o comunismo, e que prossegue hoje nos quatro cantos do planeta, por vezes em lume brando e noutras vezes com um carácter feroz, que em versão «soft» está também no nosso quotidiano. Na verdade, com uma larga gama de variantes impostas pelas diferenças de lugar e de tempo, é a mesma guerra que prossegue. Por isso, aliás, é que os cânticos de vitória que o neocapitalismo hoje canta têm uma semelhança que pode ser verdadeiramente didáctica com outros cantos de triunfo entoados na Europa do primeiro quartel do século XIX, quando as monarquias restabelecidas ou transitoriamente vitoriosas julgavam ter erradicado definitivamente a semente revolucionária de 1789 e anos seguintes. Em verdade, a Guerra de Espanha e os crimes nazis são factos do nosso tempo, até do tempo de quem só nasceu anos depois, não são «Arqueologia». Por isso este documentário de 2004 que o Canal História transmitiu em 2007 e pudemos olhar com olhos de contemporaneidade. Por isso também o franquismo sobrevive hoje em Espanha sem Franco, tal como algum salazarismo não precisa de Salazar vivo para andar por aqui, entre nós, à espera de uma oportunidade. A guerra é mais ampla no tempo do que muitas vezes se supõe. Aliás, isso mesmo disse o próprio documentário quando referiu que «a Guerra-Fria veio revalorizar o regime de Franco». E, se a Guerra-Fria terminou e deu lugar ao mundo actual, dito unipolar, todos podemos sentir que a guerra contra o comunismo prossegue. E é a mesma.