A «eleição»

Correia da Fonseca
Perante as câmaras da operadora estatal de televisão, Maria Elisa proclamou Salazar como «o maior português de sempre» e não terá sido surpresa para ninguém. Por dois motivos, pelo menos. Por um mais evidente: a vitória do ditador já vinha sendo anunciada desde há dias por alguns órgãos de imprensa escrita. Por outro menos óbvio mas mais decisivo: porque uma sorna mas pertinaz campanha de branqueamento do fascismo e de Salazar tem estado em curso, com um recente momento de apogeu consubstanciado no projecto de um museu em seu louvor e culto. Averiguar se a ideia do museu reavivou e multiplicou devoções ou se inversamente, foi o curioso concurso, ou lá o que foi aquilo, lançado pela RTP que deu novas forças ao projecto do museu e suas previsíveis consequências, é empresa de êxito difícil e, para mais, pouco ou nada útil. O que é útil, sendo mesmo a maior se não a única utilidade do «Grandes Portugueses», é registar que não apenas o nazifascismo anda por aí, como o outro, mas também e sobretudo que já é capaz de dispor de uma massa crítica de ignorantes e incautos, sensíveis a argumentos falsos e estorietas aldrabonas. E este é um facto relevante. De tal modo que um sujeito como o dr. Jaime Nogueira Pinto já se atreve a dizer, numa assembleia de gente selecta e com a TV ligada ao País, que o Estado salazarista era «uma pessoa de bem», e ninguém, que se saiba, entrou em transe misto de espanto e indignação. De facto, chamar «pessoa de bem» a um Estado que se apoiava na recusa de cidadania à totalidade dos portugueses, que para sobreviver se apoiava numa polícia política discípula da Gestapo, que roubava nas eleições que se vira forçado a organizar, que assassinava aquém e além-mar em África, que condenava milhões à fome e à consequente tuberculose, é obra. Mas a audácia de Nogueira Pinto, isto é, o seu descaramento, não emergiu do nada: pelo contrário, resultou de ele sentir, cheio de razão, que estava em circunstância que lhe permitia fazer a propaganda do fascismo que a Constituição expressamente proíbe, como Odete Santos sublinhou, e que o campo onde ele ia plantar mais aquela fétida flor verbal estava desde há muito tempo preparado para a receber. Preparado, de resto, pela própria RTP que o convidara a sentar-se naquela acolhedora poltrona e dali botar as sentenças que muito bem lhe apetecessem em favor de Salazar e, por inevitável sequência, do fascismo.

A encobridora

Talvez por ingenuidade, não alimento a suspeita de que a RTP tenha lançado o concurso «Grandes Portugueses» para doar um incomparável altifalante à propaganda do fascismo. Inclino-me antes a crer que, tendo a RTP visto que concursos idênticos tinham acontecido nos Estados Unidos, na Alemanha, na Grã-Bretanha, em França, e porque é um bocado parola e maria-vai-com-as-outras, terá querido imitar as colegas mais crescidas sem pensar nas consequências, isto é, sem pensar como devia. Mas esta convicção não implica a inocência da RTP na verdadeiramente escandalosa proclamação de domingo à noite: pelo contrário, creio que a sua responsabilidade é enorme se não total. A «eleição» de Salazar como «o melhor português de sempre» só foi possível graças à ignorância espessa em que milhões de portugueses têm sido mantidos ao que foi o fascismo salazarista, e inevitavelmente graças a uma votação construída por um activo núcleo de saudosistas do ditador de Santa Comba. Essa ignorância tem uma origem principalíssima: o silêncio da RTP ao longo de trinta anos, a sua verdadeira cumplicidade por omissão com as infâmias de Salazar e do salazarismo. É tão extensa a sua lista que nem me atrevo sequer a esboçá-la só quanto às mais importantes, embora naturalmente me ocorram os nomes do Tarrafal e de S. Nicolau, a cumplicidade com os assassinos de Franco na zona da raia e o apoio ao nazismo alemão por troca com ouro proveniente dos campos de extermínio, as fomes no Alentejo e nas Beiras. Nunca a RTP se aplicou a contar, com o empenhamento e a eficácia necessários, estes e outros aspectos da «obra» de Salazar. Nunca explicou em favor de quem Salazar governou nem quem pagou com lágrimas, sangue e suor, essa governação. Sempre, sempre a RTP se calou: sempre, sempre, preferiu «distrair-nos». Chegou mesmo a assumir e prosseguir alguns aspectos do «legado» salazarista: um anticomunismo profundo mascarado de mera desafecção, um horror à cultura e promoção cultural do País maquilhado de prioridade concedida ao generalismo da programação. Em verdade, foram décadas de cuidadosa manutenção da ignorância quanto ao fascismo e de uma não-acentuada continuação de alguns dos seus aspectos. Até que um dia a população, desapontada porque sucessivos governos atraiçoam as expectativas que Abril abriu, é proposta uma votação para escolha de um supostamente «melhor». A ignorância mantida e apoiada pela televisão vota. Ninguém pode espantar-se com o voto no nome de um ditador diante de cuja imagem retocada tem vindo a ser queimado incenso e outras ervas aromáticas.


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