Os ataques aos direitos laborais – a flexigurança

Trabalho, factor de progresso e desenvolvimento

Ilda Figueiredo
Nestas jornadas de estudo em Portugal colocámos no centro do debate a valorização do trabalho, sem o qual não há progresso e desenvolvimento, numa posição clara da nossa opção no debate que se trava na União Europeia.
O respeito pela dignidade de quem trabalha é um princípio fundamental das propostas que defendemos, incorporando os direitos duramente conquistados por lutas sucessivas de gerações de trabalhadores, pela redução do horário de trabalho, pela contratação colectiva, pela organização sindical, pela participação na organização da produção e do tempo de trabalho, por melhores condições de trabalho, pela saúde e segurança no local de trabalho, pela igualdade de direitos e oportunidades, por salários justos que permitam aumentar o poder de compra e assim contribuir para a dinamização da economia, pela garantia de acesso a serviços públicos de qualidade, pelo cumprimento dos direitos humanos, incluindo no interior das empresas.
São ganhos civilizacionais que a nossa geração tem obrigação de respeitar e defender. Sem as lutas que permitiram estes avanços não teríamos o progresso científico e tecnológico que caracteriza o nosso tempo.
Por isso, não podemos aceitar que, cada vez mais, a democracia fique à porta das empresas, que o carácter universal e solidário da segurança social pública seja posto em causa, que serviços públicos sejam desmantelados e o seu acesso fique condicionado a condições económicas de quem a eles acorre, que o trabalho seja precário e mal pago, que o desemprego se transforme num instrumento político usado para pressionar trabalhadores a aceitar as humilhações que qualquer patrão lhe queira infligir, que o próprio Estado use o aparelho repressivo para intimidar trabalhadores e as suas organizações sindicais, como se começa novamente a tentar em Portugal, mesmo nesta fase em que detém a Presidência do Conselho da União Europeia.
O posicionamento político e ideológico do nosso Grupo trouxe-o a Portugal em momentos importantes da luta que travamos contra a deriva neoliberal da União Europeia, que se acentuou desde o final dos anos noventa.

Agravamento das desigualdades

Aqui estivemos em Março de 2000, aquando do lançamento da dita Estratégia de Lisboa, durante a última Presidência Portuguesa da União Europeia, também num governo do Partido Socialista, tal como agora se repete, desde vez com maioria absoluta, demonstrando que caminham de braço dado a social democracia e as posições mais retrógradas da União Europeia.
Aqui participámos na grande manifestação que a CGTP então promoveu, tomando partido na luta e no debate ideológico que se intensificou desde então.
Aí, os líderes europeus ainda falavam dos objectivos do pleno emprego e da irradicação da pobreza e exclusão social, a par com a construção da economia do conhecimento mais avançada do mundo. Tudo isto até 2010.
Claro que esses floreados eram usados, como então denunciámos, apenas para camuflar os objectivos precisos das políticas inscritas no texto: aprofundamento da liberalização dos mais diversos sectores, reforma da segurança social, para fortalecer o sector financeiro privado e mais flexibilidade laboral. O programa do grande patronato europeu estava todo lá. E, por isso, não lhe poupou elogios.
Sete anos depois, sabemos que a pobreza atinge mais de 72 milhões de pessoas, que o desemprego não só se mantém em níveis elevados em diversos países, de que Portugal é um dos exemplos mais preocupantes, como a própria Comissão Europeia considera que cerca de 40% dos trabalhadores não têm contratos permanentes e vivem situações de grande precariedade, sobretudo mulheres e jovens. Dos cerca de 8 milhões de empregos criados depois da aprovação da Estratégia de Lisboa, mais de 60% são empregos precários, a tempo parcial e mal pagos, e ocupados maioritariamente por mulheres, demonstrando que o ano Europeu para a Igualdade não passa de letra morta. As desigualdades na distribuição dos rendimentos não pararam de crescer e Portugal também aí está na linha da frente da injustiça social.
Na revisão da Estratégia de Lisboa e nos planos nacionais de reforma, a prioridade vai para a competitividade, o aumento da concorrência, incluindo nos serviços, e a melhoria do ambiente empresarial. Pelo caminho do esquecimento ficaram a estratégia de inclusão social, a qualidade do emprego e a estratégia de desenvolvimento sustentável.
O que avançou foram as liberalizações nos transportes, nos correios, na energia, nas telecomunicações, nos serviços, mesmo com os recuos a que foram obrigados na proposta da directiva Bolkestein, cujo processo prossegue com todo o debate que se mantém em torno da divisão do conceito de Serviços de Interesse Geral e Serviços Sociais, assunto sobre o qual a Comissão promete uma nova comunicação, provavelmente ainda este ano, o que pode significar mais um passo no ataque a serviços públicos essenciais e à própria economia social.
Simultaneamente, com a privatização de sectores básicos e de serviços fundamentais cobiçados pelos grupos económicos e financeiros que, entretanto, despediram trabalhadores em nome de reestruturações de empresas, aumentaram preços e tarifas e diminuíram a qualidade do serviço prestado, avançou também a mercantilização do trabalho.

Direitos atacados

Primeiro, foi o aumento da idade para obter a reforma, em nome da sustentabilidade do sistema de Segurança Social, mas que, de facto, está a servir para dificultar o acesso dos jovens ao emprego, a agravar as condições de quem trabalha. Seguiu-se a diminuição das prestações de reforma e do subsídio de desemprego em diversos países da União Europeia, enquanto, simultaneamente, se criavam incentivos fiscais e esquemas diversos para favorecer a recolha de poupanças por parte de grupos financeiros privados, assim fragilizando, de facto, os sistemas públicos de segurança social.
Com tudo isto, estas políticas a que se juntou o Pacto de Estabilidade e as orientações monetaristas do BCE, os lucros das grandes empresas e grupos económicos e financeiros atingiram os níveis mais elevados dos últimos 30 anos.
Agora, com grupos privados mais fortes e sectores públicos mais débeis, o ataque aos direitos laborais tornou-se uma prioridade. Já nem precisam de falar de pleno emprego, mesmo que este seja precário e mal pago. É então que a questão da flexibilidade laboral, já prevista na referida Estratégia de Lisboa, assume importância fundamental, como o demonstra o chamado «Livro Verde» sobre a «modernização do direito do trabalho para enfrentar os desafios do, séc. XXI», publicado em Novembro de 2006. Aí, a Comissão Europeia enunciou o que pretendia com a «flexigurança».
Apesar da intensa campanha de mistificação, os objectivos são claros: favorecer o interesse da entidade patronal em despedir como e quando quiser, seja em nome da modernização, da inovação, seja da reestruturação, ou, simplesmente, por não gostar daquele trabalhador. É o trabalho transformado em simples mercadoria, que se usa enquanto é útil e se descarta quando não interessa. Para lá chegar, podem usar caminhos mais longos ou encurtar alguns atalhos. Depende da luta que entretanto for possível realizar.

Retrocesso civilizacional

Claro que no tal livro verde apareciam dois tipos de flexibilidade: a flexibilidade interna, associada à mobilidade funcional, à mobilidade geográfica e à mobilidade do horário de trabalho, a que a proposta de revisão da directiva do tempo de trabalho se associa. Deste modo, pretendem que a entidade patronal possa atribuir ao trabalhador funções diferentes daquelas para as quais foi contratado, possa mudar o trabalhador de instalações, ou mesmo de região ou de país (a famosa mobilidade), e possa obrigar os trabalhadores a trabalharem para além das 8 horas diárias sem ter de pagar horas extraordinárias compensando-as com horas a menos realizadas em outros dias, quando a empresa não necessitar.
Por exemplo, em Portugal, onde a mobilidade e polivalência já são muito elevadas, só através da contratação colectiva é que se podem limitar os poderes que o Código do Trabalho dá às entidades patronais.
Daí a importância da contratação colectiva para os trabalhadores. Mas daí também a pressão que está a ser feita para limitar a contratação colectiva, apostar em contratos individuais de trabalho ou, no máximo, em simples acordos de empresas ou de locais de trabalho. É que a força organizada dos trabalhadores, os seus sindicatos, são uma ameaça à exploração que as entidades patronais pretendem fazer.
Quanto à flexibilidade externa, ou seja à possibilidade de despedir sem justa causa, a que a Comissão Europeia chama também flexigurança, com o pretexto de conciliar flexibilidade no despedimento com uma possível segurança do trabalhador, trata-se de uma nova campanha de mistificação de que a recente comunicação «Para a definição de princípios comuns de flexigurança» é uma peça chave. Basta ver a contribuição comunitária que prevêem para se perceber que os já escassos meios financeiros do FSE podem vir a ser colocados ao serviço desta estratégia de destruição de direitos laborais e de regressão de conquistas civilizacionais seculares.
Em resumo, o que pretendem é dar às entidades patronais poder para fazer livremente despedimentos individuais e colectivos sem justa causa em troca de nada dado aos trabalhadores, ou melhor, de promessas de aprendizagem ao longo da vida, de medidas activas de emprego, e de regras mais flexíveis no domínio da segurança social que, na prática, a experiência já provou que não dão qualquer segurança de emprego aos trabalhadores.
Como se pode ver no documento, querem que até ao final deste ano haja um conjunto de princípios comuns de flexigurança que deverão, então, inspirar a definição e aplicação das Orientações Integradas para o crescimento e o emprego e, em especial, as Orientações para o Emprego.
Veja-se o que se diz textualmente na referida comunicação sobre as etapas seguintes. «Ao longo do próximo ciclo de Orientações Integradas, os estados-membros serão convidados a dar conta, nos Programas Nacionais de Reforma, das respectivas estratégias de flexigurança. A Comissão irá analisar estas estratégias os relatórios anuais e dará conta dos progressos obtidos no final do ciclo de Lisboa.»
Este é, pois, o momento grave que estamos a viver e o cerne do debate que travamos também no Parlamento Europeu.
Por isso, saudamos a luta dos trabalhadores portugueses, incluindo a greve geral promovida pela CGTP e iremos também estar presentes na manifestação do próximo dia 18, dia em que começa a Cimeira de Lisboa, onde os líderes europeus pretendem dar mais um salto qualitativo na integração capitalista e neolibral desta União Europeia. Por isso, assume também para nós um especial significado esta jornada de luta.

*Intervenção proferida durante as Jornadas de Estudo do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/ Esquerda Verde Nórdica realizadas a 16 de Outubro, em Lisboa.


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