Na volúpia do sistema

Jorge Cordeiro
«Não vês meu filho aquele fu­rioso que corta com os dentes o nariz do ad­ver­sário ater­rado e aquele outro que es­maga a ca­beça de uma mu­lher com uma enorme pedra? Vejo-os. (...) Criam o o di­reito; fundam a pro­pri­e­dade, es­ta­be­lecem os prin­cí­pios da ci­vi­li­zação, as bases da so­ci­e­dade e os ali­cerces do Es­tado.» (Ilha dos Pinguins, Anatole France).

Há personagens assim. Tão entranhados no papel que lhes atribuíram, faltando-lhes em opinião própria o que lhes sobra em papel de ventríloquos, que o que articulam ou escrevem para justificar os interesses que perfilham é tão espontâneo quanto desprezível. Na ficção ou na realidade. Será o caso de João César das Neves, ao que consta economista e até professor. Segundo ele – depois de aturada investigação académica e da desprendida e independente reflexão de que a prosa dá mostras –, «o des­ca­labro or­ça­mental nasceu por causa das rei­vin­di­ca­ções dos que gritam». A frase é parte da tese maior, segundo a qual «neste am­bi­ente de crise e aus­te­ri­dade vive-se uma grande ilusão de óp­tica que é pre­ciso acau­telar: os que pro­testam não são as ví­timas da si­tu­ação». Na volúpia do sistema pelo qual está tomado, o das Neves adianta até que aqueles que protestam – os trabalhadores com emprego garantido e regalias seguras, na sua óptica – «estão muito melhor que a maioria da economia».
O mundo em que Neves se idealiza é em si a negação da formação que julga ter. Os que julgavam ver na economia satisfação das necessidades humanas, elevação das condições de vida e de direitos, utilização dos recursos materiais e da força produtiva ao serviço da dignidade do homem, desenganem-se lendo Neves. Para ele, como para o grande capital em nome de quem fala, da economia devem resultar baixos salários, ausência de direitos e instabilidade pessoal. Ah! E sobretudo abundar «os silenciosos e resignados», o verdadeiro e louvado modelo de cidadania que no imaginário de César das Neves evitará sem ondas a estabilidade orçamental e garantirá a abundância dos lucros daquela meia dúzia em nome dos quais escreve.


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