O Presidente insustentável

Correia da Fonseca

A te­le­visão per­mitiu que os ci­da­dãos por­tu­gueses vissem e ou­vissem o se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica in­formar-nos de que a si­tu­ação do País é «in­sus­ten­tável». A in­for­mação pre­si­den­cial foi pro­fe­rida por mais de uma vez, de­certo para que ne­nhum ci­dadão dei­xasse de co­nhecê-la, e cada uma dessas vezes foi mul­ti­pli­cada pelo nú­mero de no­ti­ciá­rios dos di­versos ca­nais em que foi in­cluída, o que, feitas as contas, terá aca­bado por per­fazer bem mais de uma dúzia de opor­tu­ni­dades. To­mámos, pois, co­nhe­ci­mento. In­fe­liz­mente, porém, o se­nhor Pre­si­dente não terá tido a opor­tu­ni­dade, ou por­ven­tura a pa­chorra, de acres­centar à sua men­sagem afinal muito sin­té­tica al­guns por­me­nores que nos di­la­tassem as sa­be­do­rias. Por exemplo: em que as­pecto é que, con­cre­ta­mente, Por­tugal é in­sus­ten­tável? Será em ma­téria de efec­tiva in­de­pen­dência para se gerir a si pró­prio, su­jeito como está às or­dens de Bru­xelas, im­pe­dido de sustar a im­por­tação de mer­ca­do­rias de du­vi­dosa ne­ces­si­dade que agravam o dé­fice da nossa ba­lança co­mer­cial com o ex­te­rior, ma­ni­e­tado quanto ao de­se­jável de­sen­vol­vi­mento da nossa ac­ti­vi­dade agrí­cola e pes­queira? Ou o se­nhor Pre­si­dente terá que­rido de­nun­ciar como «in­sus­ten­tável» (po­deria ter usado ou­tras pa­la­vras como «in­su­por­tável», «ina­cei­tável» ou mesmo «in­fame», mas bem se sabe que o se­nhor PR não é homem de pa­la­vras rudes) o fosso di­a­ri­a­mente am­pliado entre os que, tendo muito, vivem lin­da­mente, e os que, não tendo nada, gemem no de­ses­pero quo­ti­diano? Não se sabe ao certo, na ver­dade, a que in­sus­ten­ta­bi­li­dade se re­feriu o Pre­si­dente, mas é fora de dú­vida que está cheio de razão. Aliás, como bem sabe quem saia à rua de ou­vidos de­sim­pe­didos, anda o povo a re­petir que «isto não se aguenta mais», por estas ou equi­va­lentes pa­la­vras, e toda a gente sabe, o se­nhor PR por­ven­tura me­lhor que nin­guém, que voz do povo é voz de Deus. Ora aí está.

As agên­cias têm ou­vidos

Porém, esta ex­ce­lente terra de gente não menos ex­ce­lente também é terra de gente in­grata e até ma­li­ciosa. Assim, não faltou quem, pe­rante o alar­mante aviso pre­si­den­cial, logo co­meçou a mur­murar que, mais ainda que o País, o se­nhor Pre­si­dente é ele pró­prio in­sus­ten­tável. E atreveu-se a tentar ex­plicar porquê. Ao con­trário do que po­deria supor-se, não seria por o se­nhor Pre­si­dente acu­mular, ao que consta com ver­dade ou sem ela, duas re­formas de va­lores sim­pá­ticos, ha­vendo ainda uma ter­ceira como que à es­pera de vez, pelo que estar o Es­tado a sus­tentar tão ge­ne­ro­sa­mente o se­nhor pro­fessor seria in­su­por­tável. Mas trata-se pro­va­vel­mente de um boato sem fun­da­mento, in­venção das in­vejas miu­di­nhas que por aí vi­cejam. Con­tudo, a ale­gada in­sus­ten­ta­bi­li­dade do se­nhor Pre­si­dente re­sul­taria de outro mo­tivo: é que o Pre­si­dente Ca­vaco se teria es­que­cido de que as po­de­rosas e fa­tais agên­cias de ra­ting estão por aí, de atenção vol­tada para o nosso País e para quanto nele acon­tece, por­tanto ine­vi­ta­vel­mente vi­gi­lantes do que o nosso Pre­si­dente diz, so­bre­tudo sobre ma­téria eco­nó­mico-fi­nan­ceira, ele, dis­cí­pulo apli­cado e de­certo bri­lhante das sa­benças do­mi­nantes na vida in­ter­na­ci­onal desde os in­flu­en­tís­simos con­su­lados do se­nhor Re­agan e da se­nhora That­cher. E o pro­vável ra­ci­o­cínio das re­fe­ridas agên­cias surge como óbvio. Terão elas pen­sado: se o Pre­si­dente por­tu­guês, téc­nico re­pu­tado se não in­ter­na­ci­o­nal­mente pelo menos lá na sua terra, afinal «um dos nossos» que con­nosco par­tilha prin­cí­pios e re­gras, diz que aquilo não se aguenta, o que temos o di­reito e até o dever de fazer é car­regar ainda mais nos juros a pagar por Por­tugal, se não cortar-lhe o cré­dito de vez. É que as fa­mi­ge­radas agên­cias têm ou­vidos, e esse in­de­se­jável facto pode ter con­sequên­cias que o se­nhor Pre­si­dente de­sa­tendeu, me­ta­mor­fo­se­ando-o num in­vo­lun­tário peão no jogo do ad­ver­sário. Neste quadro, tornar-se-ia ele um pre­si­dente in­sus­ten­tável, o que seria tris­tís­simo e pro­va­vel­mente in­justo. Para lá disto, porém, emergem ou­tras pos­si­bi­li­dades. Será sus­ten­tável um PR que cla­ra­mente de­seja uma prá­tica go­ver­na­tiva mais à di­reita, mais pe­na­li­za­dora dos mais po­bres, ar­den­te­mente re­cla­mada pelos mais ricos? Será sus­ten­tável um PR pouco ou nada in­cli­nado a fazer cum­prir a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica no que ela contém de so­ci­al­mente mais justo e pro­gres­sivo? Será sus­ten­tável um PR que dá fre­quentes si­nais de apreço e nos­talgia por en­ten­di­mentos tí­picos do 24 e de fastio pe­rante pro­jectos e va­lores do 25? São dú­vidas tei­mosas, estas. A que nunca, até agora, foi pos­sível en­con­trar res­postas agra­dá­veis.



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