Confundir, ficar confuso e instalar a confusão

Jorge Messias

Do ca­sulo há-de sair uma bor­bo­leta. Não se sabe com que cor nas­cerá mas é certo que as fases de me­ta­mor­fose se ace­leram e devem ser ob­ser­vadas com a maior atenção. Passou-se ra­pi­da­mente da acla­mação do ca­pi­ta­lismo vi­to­rioso à crí­tica do seu fun­ci­o­na­mento e à an­te­visão ca­tas­tró­fica do caos. Exer­cí­cios ver­bais que não en­tra­varam a marcha dos acon­te­ci­mentos, sempre no sen­tido da con­cen­tração da ri­queza, do re­forço dos po­deres po­lí­ticos e ca­pi­ta­listas e da con­tes­tação agres­siva dos fun­da­mentos da de­mo­cracia. No plano eco­nó­mico, alastra a de­gra­dação do te­cido pro­du­tivo, o que não im­pede a afir­mação pú­blica de um op­ti­mismo fun­da­men­tado na men­tira das es­ta­tís­ticas e nos de­lí­rios das ad­mi­nis­tra­ções mul­ti­mi­li­o­ná­rias. Em con­tra­par­tida cons­ti­tuíram-se novas es­tru­turas do grande ca­pital, for­te­mente cen­tra­li­zadas e si­tu­adas numa zona im­pre­cisa, entre o poder po­lí­tico, o eco­nó­mico e o fi­nan­ceiro. Tudo isto faz lem­brar os an­te­ce­dentes do 28 de Maio.

A nível dos par­tidos po­lí­ticos também se re­velam as­pectos pre­o­cu­pantes. Por exemplo no PSD, solto na cor­rida para o poder e em busca de novas ali­anças a qual­quer custo, avança a ideia de que a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica deve ser re­vista no sen­tido da su­pressão do prin­cípio que de­fine Por­tugal como uma Re­pú­blica, abrindo-se deste modo as portas ao re­gresso da Mo­nar­quia. É uma ten­ta­tiva de sub­versão que não deve ser su­ba­va­liada. Não pas­sará por ora, é certo, mas abre um pre­ce­dente a «tra­ba­lhar» no fu­turo. Ela partiu e é apoiada por um nú­cleo do PSD em as­censão, en­ca­be­çado por Paulo Tei­xeira Pinto, homem forte da igreja, do Opus Dei, da banca, da causa mo­nár­quica e das cen­trais ca­pi­ta­listas mun­diais. O ban­queiro ca­tó­lico pre­side à co­missão de re­visão cons­ti­tu­ci­onal dos so­ciais-de­mo­cratas...

Como que por acaso, surgiu si­mul­ta­ne­a­mente, de outra fonte, a no­tícia de que o go­verno so­ci­a­lista pre­para com ca­rácter de ur­gência a «cla­ri­fi­cação» das normas cons­ti­tu­ci­o­nais que con­di­ci­onam a in­ter­venção das forças mi­li­tares em ac­ções de se­gu­rança in­terna. Será para tal su­fi­ci­ente que o se­cre­tário-geral da Se­gu­rança a re­qui­site. E a al­te­ração da norma que vi­gora nem se­quer exi­girá uma re­visão dos termos da Cons­ti­tuição. Bas­tará um des­pacho, visto que a se­gu­rança in­terna na­ci­onal deve acatar os prin­cí­pios in­ter­na­ci­o­nal­mente adop­tados pela NATO. Prevê-se que esta al­te­ração de fundo seja apro­vada e fique «ope­ra­ci­onal» até No­vembro pró­ximo, data da re­a­li­zação, em Lisboa, da pró­xima ci­meira da es­tru­tura mi­litar oci­dental.

Todos estes con­tro­versos de­sen­vol­vi­mentos se pro­cessam por entre a maior das con­fu­sões. O Es­tado corta nas verbas so­ciais e gasta cada vez mais com a área fi­nan­ceira. Afirma apostar na luta contra a po­breza e jorram tor­rentes dos di­nheiros pú­blicos para salvar os bancos pri­vados, re­cursos que ja­mais con­cor­rerão para re­solver os grandes pro­blemas na­ci­o­nais. Des­preza a Cons­ti­tuição, li­be­ra­liza os des­pe­di­mentos, não tem qual­quer res­peito pela ética po­lí­tica mais ele­mentar. Por toda a parte re­bentam os es­cân­dalos.

O pa­no­rama do mundo ca­tó­lico é idên­tico. Es­cân­dalos e mais es­cân­dalos, coisas de «bradar aos céus». Actos que são co­me­tidos sempre com os mesmos ob­jec­tivos: exigir aos po­bres que pa­guem os des­mandos dos ricos; acu­mular te­souros nas mãos da Igreja e de poucos mais; e en­co­brir a ex­plo­ração do homem com os de­ca­dentes mitos re­li­gi­osos do perdão, da en­trega e do ar­re­pen­di­mento. Basta pegar-se em jor­nais com poucos dias e mesmo sem grande em­penho em in­formar e em fazer pensar, para ve­ri­fi­carmos em que de­plo­rá­veis meios o Va­ti­cano im­pera e en­ri­quece: o de­sem­prego ga­lo­pante que os bispos calam, os ne­gó­cios sus­peitos (mas «gra­ti­fi­cantes») em que se en­redam, as mi­se­ri­cór­dias e as IPSS que pros­peram ao ritmo do alas­tra­mento da po­breza ou a densa in­triga po­lí­tica em que a hi­e­rar­quia ecle­siás­tica se en­volve. Tudo com a co­ber­tura de uma imagem pú­blica que per­tence ao pas­sado e na qual já bem poucos acre­ditam: a Igreja como mis­tério di­vino, pro­vi­den­cial e ins­pi­rada na de­fesa dos po­bres.

A imensa mai­oria do povo por­tu­guês já não se deixa iludir mas per­ma­nece tra­di­ci­o­nal­mente ca­tó­lica. Um ca­to­li­cismo que exige pas­si­vi­dade e obe­di­ência. Os ca­tó­licos ho­nestos, até agora ador­me­cidos pelos passes de pres­ti­di­gi­tação, acordam len­ta­mente, aos poucos. É pre­ciso que ace­lerem o passo.

É pos­sível re­cusar-se uma Igreja cor­rupta e guardar-se a fé, num Es­tado de­mo­crá­tico onde o di­reito à opi­nião e à con­vicção seja ple­na­mente res­pei­tado. Mas é ple­na­mente in­justo e in­to­le­rável ad­mitir-se que qual­quer igreja se or­ga­nize no sen­tido de se subs­ti­tuir ao Es­tado, de se cons­ti­tuir em mo­no­pólio ou de se apoiar em qual­quer forma de re­pressão.

Em úl­tima aná­lise, não será a alta hi­e­rar­quia da Igreja a de­cidir sobre os grandes des­tinos da co­mu­ni­dade crente. Será o povo ca­tó­lico, aquele que vive, si­mul­ta­ne­a­mente, um fu­turo que ide­o­lo­gi­ca­mente con­cebe e no qual acre­dita, e um pre­sente que se torna cada vez mais negro, po­voado pela ex­plo­ração, pela po­breza e pelo obs­cu­ran­tismo mas que de forma al­guma é ir­re­ver­sível.

É pre­ciso ajudar-se os ca­tó­licos a «le­van­tarem-se do chão». Só de­pois eles verão como uma igreja pode fazer sen­tido numa so­ci­e­dade mais justa, de­mo­crá­tica, livre e co­lec­ti­va­mente so­be­rana.



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