Um homem

Filipe Diniz

Um homem está pe­rante o tri­bunal fas­cista. O juiz in­ter­roga-o.

Per­gunta: «É ver­dade que o se­nhor rein­gressou no PC em 1954 logo após a sua fuga do Forte de Pe­niche?»

Res­posta: […] «Só “rein­gressa” quem sai… e eu or­gulho-me de haver abra­çado a causa do co­mu­nismo desde os al­vores da minha ju­ven­tude e de manter até hoje sem in­ter­rup­ções a hon­rosa con­dição de co­mu­nista, qua­li­dade que es­pero con­servar até ao úl­timo alento da minha vida».

Este homem fora preso pela se­gunda vez três anos antes. Foi de novo bar­ba­ra­mente tor­tu­rado: es­pan­ca­mentos, pri­vação do sono, 78 dias no se­gredo em Ca­xias, pro­lon­gado en­cer­ra­mento numa sala do­tada de equi­pa­mentos de pri­vação sen­so­rial e in­du­tores de alu­ci­na­ções. Não falou.

Este homem, então com 47 anos, é con­de­nado pelo tri­bunal fas­cista a uma pena de 23 anos, 8 meses e «me­didas de se­gu­rança». Na prá­tica, é con­de­nado a prisão per­pétua.

Este homem na prisão es­creve e ilustra ao longo dos anos se­guintes cartas para o seu filho, uma cri­ança com um grave pro­blema de saúde. Da sua cela de con­de­nado surge um rico uni­verso de per­so­na­gens ale­gres e aven­tu­rosos, de en­canto pelo co­nhe­ci­mento e pelo tra­balho (cujas má­quinas – trac­tores, tornos me­câ­nicos, fre­sa­doras - ilustra pri­mo­ro­sa­mente), de en­tu­siás­tica ale­gria de viver fé­rias, acam­pa­mentos, idas à praia, pas­seios, cor­ridas de au­to­mó­veis. Com uma es­pan­tosa força, este homem pro­cura, à dis­tância, in­terpor toda a sua energia entre o filho e a do­ença cuja marcha ine­xo­rável sabe estar em curso.

Este homem era in­capaz de deixar um ini­migo sem com­bate. Fosse ele o fas­cismo, fosse ele a ex­plo­ração, a opressão, a ig­no­rância e o ódio à cul­tura, as ma­no­bras contra Abril, fosse ele a contra-re­vo­lução nas suas di­fe­rentes fa­cetas. Fosse o ini­migo uma do­ença in­cu­rável.

Era um re­vo­lu­ci­o­nário. Com ele sa­bemos que pri­meiro dever do re­vo­lu­ci­o­nário é em­pe­nhar na luta toda a energia e todas as ca­pa­ci­dades, mesmo nas con­di­ções mais de­ses­pe­ra­da­mente ad­versas.

Este homem era An­tónio Dias Lou­renço. Con­servou a con­dição de co­mu­nista até ao úl­timo alento da sua vida. Nem o po­deria ter sido de outra forma.



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